Imagem: Notícias ao Minuto Brasil - Síria sofre com ataques logo após votação sobre cessar-fogo na ONU
Por Anselmo Heidrich
A Síria é um país situado em uma das mais instáveis regiões do globo, o Oriente Médio. Sua concentração populacional está a oeste, uma franja de terra mais úmida do país e o interior é um enorme deserto que se estende ao sul, na Península Arábica. Mas não é qualquer deserto… Ele margeia o Golfo Pérsico que concentra 1/3 das reservas de hidrocarbonetos (petróleo e gás) mundial. Mas para enviar esta riqueza aos principais centros consumidores (Europa e América) tem que se circundar a península, passar por um estreito – Ormuz – que é estratégico e vigiado de perto por inimigos (Irã), costear o sul com vizinhos em pé de guerra (Iêmen), atravessar outro estreito – Bab-el-Mandeb – sujeito à pirataria somali e adentrar no Mar Vermelho para depois atravessar o Canal de Suez e só daí então conseguir entrar no Mar Mediterrâneo no sul do continente europeu onde estão alguns dos principais consumidores. Claro que tudo isto custa. A distância, a passagem pelo canal e os riscos embutidos nesta hercúlea tarefa sem considerarmos os “custos políticos”, i.e., manter governos aliados que tenham interesse na estabilidade regional e manutenção da integração comercial. Só que há um jeito mais fácil.
Seria um mamãozinho com açúcar se pudessem enviar a produção de hidrocarbonetos diretamente pelo deserto em dutos passando pela Síria até chegar ao Mediterrâneo Oriental. Mas se tudo fosse uma mera questão de logística e pagar a quem tem poder de cobrar seria bem menos confuso. Quando falamos em Oriente Médio não nos referimos apenas à vastidão desértica e seu subsolo. Há muito mais tipos de paisagens sobre a superfície, só que culturais… Descendo os rios Tigre e Eufrates (que nascem na Turquia) até sua desembocadura encontramos uma grande e fértil planície, a Mesopotâmia que foi berço de civilizações, como a Assíria. Formando um arco até o Rio Nilo dentro do Egito temos o Crescente Fértil que são dois grandes ecúmenos (regiões favoráveis ao povoamento) na região. Três grandes regiões monoteístas surgiram aí, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo que mais tarde, por diferentes razões entrariam em conflitos. Também civilizações tiveram a região em seu bojo, os persas, os gregos e os romanos. O Império Romano se dividiu em dois e o Império Romano do Oriente sobrevive resistindo ao Império Islâmico, que se formaria mais tarde. Mas os católicos tentam recuperar esta área de onde teria surgido a sua religião. Mais tarde, provenientes da Ásia Central chegam os turcos otomanos e seu império domina o mundo árabe, norte da África e os Bálcãs no sudeste da Europa por 600 anos até a I Guerra Mundial. Quando esta finda, surgem países onde havia uma coesão dada pela força turca.
Pela primeira vez temos a Síria no mapa, assim como a Jordânia, o Iraque, a Arábia Saudita criados no em 1916, quando ingleses e franceses partilharam o território do Império Turco-Otomano. Como não podiam vencer os turcos sozinhos articularam uma aliança como os árabes que eram subjugados pelo império. A promessa, na verdade uma moeda de troca era a criação de um país para os árabes, a Grande Arábia. Mas o que ocorreu, de fato foi a partilha em vários países. Inicialmente o Iraque, a Jordânia e a Palestina pelos britânicos, a Síria pela França.
Vamos definir os fatores envolvidos, como toda grande população não há uma homogeneidade que faça uma maior união entre os árabes que sua própria língua. Isto pode ser básico, mas não é suficiente. Lembremos que a religião é um fator essencial na região e não há somente uma, mas três grandes religiões monoteístas, cada qual com sua visão de mundo, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Embora vários países fossem criados, eles permaneceram divididos internamente entre grupos religiosos e suas subdivisões internas, as seitas, como foram os sunitas e xiitas dentro do Islã. Para melhor controle da situação e aliança com grupos locais, algumas dessas elites locais privilegiaram seus grupos étnicos. P.ex., xiitas na Síria e sunitas no Iraque.
Como sabemos, a região é riquíssima em petróleo, mas este não é o caso da Síria que, por sua vez tem um ótimo acesso ao Mar Mediterrâneo. Os grandes produtores voltados para leste, contrariamente vivem sob tensão entre rivais (Irã, Iraque, entre outros) com saída apenas pelo Golfo Pérsico e uma estreita passagem, o Estreito de Ormuz. Com a II Guerra Mundial, o ciclo do chamado imperialismo finda e as nações europeias enfraquecidas abandonam a região, mas plantando um problema, a criação de um estado polêmico, Israel. Quando abandonada pelos britânicos, Israel é atacada pelos estados árabes vizinhos. Próxima à Israel, Síria tem constantes golpes de estado e assim como a região se torna uma bomba-relógio. Justamente nesta época surge na Síria uma ideologia o Baaz que resgata o antigo sonho de união do mundo árabe, o panarabismo com ideias socialistas, mas com algo que a distingue de muito do que vemos hoje, a divisão entre estado e religião, isto é, a laicidade. Seguindo esta visão, Síria e Egito formam uma aliança e enquanto este nacionaliza (estatiza) o petróleo no país, Al Assad, pai do atual Bashar al-Assad se torna o chefe do estado baaz no país. Ao lado, no vizinho Iraque, Saddam Hussein, aquele mesmo que foi enforcado cresce em poderio, mas mantém suas diferenças e divergências com o país vizinho. Isto leva os demais países árabes a se dividirem em Baaz pró-Síria ou Baaz pró-Iraque. Em cena, que na verdade nunca tinha saído do ato, a velha Razão de Estado dá as caras, novamente. Em suma, não se trata de uma gritante diferença étnica, religiosa que inviabiliza a convivência entre os povos na região, assim como as diferenças religiosas, pois mesmo quando situadas distantes há o aproveitamento dessas para manutenção e expansão do poder dos organismos estatais. E mesmo no caso de uma ideologia laica criada na região, o Baaz, a Razão de Estado prevalece. Por essas e outras é que não é a teologia ou ideologia qualquer que explica isto tudo, a não ser como um elemento a mais. Mas sim a Geopolítica. Ela é que é o estudo adequado para entender a realidade em sua complexidade, como uma eterna luta pela conquista e administração do poder territorial como algo inerente aos humanos e suas agremiações políticas e sociais.
Agora estamos na Guerra Fria e a divisão geopolítica do globo fica clara, ou somos pró-EUA ou pró-URSS. Esta oposição se reflete em conflitos regionais, como entre árabes e israelenses com ataques no sul do Líbano, área estratégica entre Síria e Israel. Mas nesta luta não há apenas dois lados ou duas ideologias claramente antagônicas como muitas vezes aprendemos nos bancos de escola. Surge dentro da Síria um movimento de oposição ao regime, a Irmandade Muçulmana que manterá até 1963, quando ocorre um golpe do Partido Baaz. A oposição com força religiosa cresceu durante os anos 70 até que milhares fossem massacrados no levante de Hama, em 1982. Temporariamente apagada, as sementes dessa resistência iriam germinar mais tarde…
Agora lembremos a composição religiosa da região. A maioria dos árabes era (e continua sendo) muçulmana e esta se subdivide em dois ramos fundamentais, sunitas e xiitas, cujas diferenças remontam a época da morte de seu profeta, Maomé.[1] No caso da Síria, apesar de ser um estado laico, os governantes eram xiitas que representavam menos de 13% da população e mais de 70% da população, sunita. Um fato curioso é que os cristãos perfazem 10% da população do país. Enfim, os xiitas controlam a população através da administração e o exército.
No ano 2000, Assad, o pai morre e o filho assume com muitas promessas modernizadoras na área social, econômica, tecnológica etc. que se seguiu a um período de intenso debate político. Agora lembre-se, que em momentos de abertura política de regimes autoritários (vide URSS no período Gorbatchov), a oposição que jaz adormecida mantém sua crítica e revolta contra o regime, latentes. Na menor chance de manifestação ressurgem com força e, geralmente, de forma caótica que leva a uma violência de um governo que vê na repressão pura e simples, uma instituição já consagrada. Como vimos, a repressão com milhares de mortos já era corriqueiro desde os anos 70. Por que agora em um “mundo globalizado” não iria ocorrer da mesma forma só por que celulares se tornaram mais acessíveis? É uma grande ingenuidade achar que o simples acesso a mercados internacionais torna a política mais civilizada e a cultura como um todo, automaticamente, mais compreensiva entre suas diferenças em qualquer lugar do mundo. O desenvolvimento nunca é homogêneo para todos e sem a percepção e administração que leve a cultura e geografia locais, não há sociedade que se estabilize.
No plano externo, o então presidente americano George W. Bush declara a Síria pertencente ao “Eixo do Mal” (juntamente com Iraque, Líbia, Cuba, Coreia do Norte e Irã). Isto leva ao isolamento do país e as negociações emperram. Novamente, Razões de Estado operam… Até outubro de 2015, o governo de Assad era apoiado por Rússia (que já detinha bases militares no país), por Irã e China. Todos esses países que a Europa chama de “oriente” (mesmo incluindo a Rússia nesse bolo). Aliados à oposição de Assad estão Estados Unidos, Reino Unido, França, Turquia e Arábia Saudita. A divergência entre estes grupos de países, o Ocidente e o chamado “Eixo do Mal” não é só pelo financiamento ao terrorismo. Sauditas, cujo país é um grande aliado americano também são acusados de ajudarem grupos terroristas e financiamento de mesquitas com mensagens claramente antiocidentais mundo afora e nem por isso sofreram qualquer tipo de boicote e nem poderiam, pois são os maiores exportadores mundiais de petróleo. A questão que leva a outro nível de complexidade regional é quem se opõe ao controle que vise facilitar a distribuição dos recursos energéticos que facilitam o consumo de seus principais importadores. Lembre-se que a Síria estava no caminho e agora, como herdeira das relações com a antiga URSS, uma aliada da Federação Russa.
Agora entram em cena outros agentes, não menos importantes, responsáveis pela inclinação do pêndulo geopolítico ora para as forças ocidentais (EUA, Europa Ocidental, Japão, Arábia Saudita etc.), ora para as orientais (Rússia, Irã e China): os curdos. Os curdos considerados o maior povo apátrida do mundo, que se distribuem entre Síria, Iraque, Turquia e Irã também começam a se manifestar no cenário político sírio, o que leva à repressão e mortes. Em 2011, como já devem saber começa a chamada Primavera Árabe, uma série de protestos que vai se estendendo por todos os países árabes em nome da democracia. O que tem que ficar claro é que democracia não é um ideal per se quando se trata de um regime político, mas um meio para se atingir certos ideais. A questão agora é saber quais seriam estes em países árabes? Uma coisa que chama atenção ao lermos editoriais politicamente corretos em defesa da democracia, que estão certos quanto ao método político é que não se perguntam qual o objetivo de muitos desses movimentos no uso da democracia: é por um estado de direito aos moldes ocidentais ou a instalação de teocracias que destituam regimes laicos e autoritários do poder na borda subdesenvolvida do mundo?
Duas categorias de países se formam na região, os que viabilizam processos de mudança através do regime democrático e os que sofrem repressão de seus governos, o caso da Síria. Esta se generaliza dando origem a uma guerra civil entre diversas facções. Quais são elas? Lembremos que uma minoria, xiita, laica e governista se opõe a uma maioria religiosa sunita, em que pese o fato de haver uma minoria laica na oposição, a grossa maioria tem fundamentação religiosa, como se pode averiguar no quadro abaixo:
Xiitas | Sunitas | |||
Laicos | Islamitas | Islamitas extremistas | ||
Governo Assad | FSA (Frente Islâmica)
“oposição”
| Al Nusra
(al Qaeda
na Síria)
| ISIS (EI = Exército Islâmico) | |
Obviamente que em meio a uma crise como esta surgem oportunistas, dos quais o ISIS é apenas mais um, que se alimenta do ressentimento da opressão aos sunitas, da visão do ocidente invasor, a identidade árabe e a mitologia de antigos árabes. O objetivo do ISIS impacta muitos. Pretendem construir um Estado Islâmico em todo o Norte da África e Oriente Médio, mas seus oponentes não se restringem a Assad ou o Ocidente. Lembre-se dos curdos, que têm organizações políticas, como o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (Parti Karkerani Kurdistan, PKK) perseguidas em muitos países, mas com ao tirar proveito da crise passaram a controlar o norte da Síria e eles têm recebido financiamento para lutar contra os insurgentes. Perseguidos por aliados ocidentais como a Turquia, os curdos também são inimigos de “inimigos maiores” dos ocidentais. Na confusa geopolítica do Oriente Médio, a máxima de que “o inimigo de meu inimigo é meu amigo” não funciona, pois o inimigo de meu inimigo pode ser meu inimigo também.
Aqui já podemos tirar algumas conclusões. Enquanto os impérios europeus existiram durante, a Síria como conhecemos há pouco mais de 70 anos. Claro que como toda ex-colônia não foi ela quem formatou suas fronteiras, mas isto também não deve servir de desculpa e causa única para todas as mazelas posteriores. Fosse assim, nós aqui na América Latina também deveríamos estar em ebulição civil porque houve imposição de linhas demarcatórias.
Para muitos analistas, a anatomia da crise política, social, econômica nas ex-colônias se resume ao seguinte quadro esquemático:
Necessidade de controlar o próprio destino | ZONA ESTRATÉGICA |
Todos a querem | |
Impérios | |
Europa divide a região para controle | |
Países desenhados sem consulta à população | |
FRACASSO: Guerra Civil |
A retórica ideológica embutida no esquema politicamente correto acima diz que todo povo deve controlar seu próprio destino, mas o que vemos é que “povo” é uma categoria vaga, melhor substituída por população que encerra um conceito meramente quantitativo ou sociedade, que compreende um conceito qualitativo não harmônico, isto é, que tem o conflito e divisão de interesses como premissas. Quando percebemos que durante estas décadas, a ideologia agregadora daquelas pessoas foi a laica, nacionalista e socialista Baaz, que só se manteve no poder graças a repressão nos perguntamos qual a densidade teórica do ideal de historiadores? Portanto, o relato histórico tem que ser descritivo mesmo ou não entenderemos mais nada. Quando substituída por premissas valorativas que nada mais são que juízos de valor pautados por frágeis ideais, só ficamos mais e mais confusos sem entender o que realmente acontece. Este é o caso da Síria, quando a retórica nacionalista é usada para apontar soluções esquecendo-se que foi justamente ela que levou à ruína da pouca estabilidade que existia.
Se este artigo serviu para algo espero que seja a resposta à pergunta “quem tem razão na guerra na Síria?” ao que direi depende. Agora, claro está que este relativismo analíticonão deve servir como relativismo moral, pois se há algum valor que sirva como baliza absoluta aí está e é nele que devemos nos pautar quando dizemos que algo está errado, independente de qual lado, ideologicamente mais simpático venha a agressão. Evidentemente que numa guerra ocorrerão mortes, mas daí resta saber quem agrediu primeiro e de que forma nos levando a uma análise um tanto quanto tecnicista, mas necessária para podermos ter alguma posição (nem que seja a da neutralidade) neste bravo novo mundo tribal globalizado.
…
[1] Quando este morreu não deixou nenhum sucessor e seu primo e genro, Ali reivindicou a posse de profeta da religião e os califas, chefes-de-estados – os shiat Ali –“partidários de Ali”, mais conhecidos como xiitas assumiram que qualquer liderança religiosa só poderia vir da linhagem de Maomé. Seus opositores, os sunitas, seguem um documento que narra as experiências de Maomé, a Sunna e admitem como lideranças sucessores de outros califas além de Ali. Como se deduz, é uma luta por poder sucessório que vai além de qualquer teologia.