sábado, março 23, 2013

Questão Indígena - 2


FRIDAY, JUNE 03, 2005

Índios 9

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Todo dia é dia de índio – final

por Anselmo Heidrich em 24 de maio de 2005 
Resumo: A mistificação da condição indígena nada explica porque não parte de uma simples realidade: os índios são gente como a gente, sujeitos a erros e acertos, dependentes de decisões que partem de suas responsabilidades individuais. 


Quando os latino-americanos despertaram (no século XIX) para a consciência nacional, vão encontrar pronta uma base mítica que lhes servirá para tentar reivindicar como próprio, o passado, para tentar desculpar ou mascarar o fracasso relativo da América Latina, filha do Bom Selvagem, esposa do Bom Revolucionário, mãe predestinada do Homem Novo.
Carlos Rangel, Do Bom Selvagem ao Bom Revolucionário.



No mês de abril passado, a revista Terra publicou um artigo – O guardião dos povos invisíveis - sobre a vida do sertanista Sydney Possuelo. Um caso relatado pelo funcionário da Funai me chamou bastante a atenção:
“Certa vez, quando era diretor do Parque Indígena do Xingu, Possuelo viu uma índia grávida aproximar-se do posto da Funai. Ela estava em trabalho de parto e precisava de ajuda. Mas o filho não tinha pai e, portanto, seria enterrado vivo, como rezava a tradição. Possuelo propôs um trato: ficaria com a criança e, em troca, daria à mãe redes e uma espingarda. A índia topou, mas com a condição de amamentar o bebê. Meses depois, a mãe deixou a criança e foi embora. Alguns dias se passaram e ela retornou. Queria-o de volta. A estratégia de Possuelo funcionara: depois de ter o filho em seus braços por meses, ela não podia mais desvencilhar-se dele.”
Se o índio é portador de uma pureza ou, como diz a mesma matéria supracitada, “que o homem branco [deve repensar] as condições injustas que impôs a esses povos” para que fazer o acordo com a mulher que iria praticar um infanticídio, “normal” para sua cultura?
O fato é que, mesmo para aqueles que são os críticos superficiais de nossa cultura e legado civilizacional, há limites para o que suportamos nas culturas alheias. Se, ao contrário, realmente admirassem a cultura indígena em questão em toda sua ‘pureza’ deixariam que o assassinato transcorresse sem maiores problemas. Ainda bem que o sertanista do caso relatado teve o nível de sanidade minimamente necessário para discernir o certo do errado no relato acima.
O “bom selvagem”
Nós sabemos de onde vem este mito do “bom selvagem”. Vem da Europa que ignorava antropologicamente, como eram realmente as sociedades indígenas. Mas, isto não é desculpa para que, até os dias atuais, o mito se perpetue. Não nos chamados “meios ilustrados”.
Em 14 de fevereiro de 1994, o jornal O Estado de S. Paulo [1] publicou uma página sobre o preconceito e discriminação que os indígenas sofrem da sociedade manauara. Disto, eu não desconfio. Mas, a raiz do preconceito é menos de ordem racial que cultural. O que é simples de entender: tanto os amazônidas quanto os cidadãos da capital Manaus são, em grande parte, descendentes de quem? De índios, portugueses, nordestinos etc. Não dá para perceber nitidamente, exceto por seus hábitos, vestimentas que são grupos, essencialmente, distintos. Mas, para a redação do jornal, sim:
“(...) para contornar as dificuldades, um verdadeiro ‘bloqueio branco’, alguns [índios] tentam até omitir a condição indígena”.
Por que não “bloqueio amazônida”? Ou “bloqueio manauara”? Por que o uso, entusiasta, de “branco” se não é esta a questão?
Este clichê de faroeste faz a cabeça de jornalistas e é impressionante como, apesar da vulgaridade, passa batido sem qualquer questionamento. Para qualquer leitor mais atento, fica evidente que a questão não é racial. O argumento, generalizante que seja, de uma moradora de um bairro de Manaus de que “eles são imundos e agressivos”, evidencia que o problema não é a pigmentação da pele ou formato do crânio.
Há um trecho ainda em que o próprio autor da matéria ignora sua contradição:
“A índia sateré, Mazonina da Silva Vieira, de 18 anos, a Moi, não confia mais nos homens brancos. Durante sete meses, namorou um rapaz loiro que conheceu nas ruas de Manaus. “Estava apaixonada e feliz”, lembra. Para não ser discriminada, resolveu não contar que era índia. Como tinha cabelos compridos e havia estudado até a 5a série, o que não é comum entre os índios da região, conseguiu evitar que ele desconfiasse da sua condição indígena. Um dia, cansada de mentir, decidiu contar a verdade. ‘Foi neste momento que ele me abandonou’, afirma.” (Itálicos meus.).
Estava “cansada de mentir” ou foi a partir de então que decidiu mentir para justificar a recusa do jovem mancebo?Por que se o rapaz não percebera que ela era índia é por que racialmente não se percebia diferença nenhuma de uma moça qualquer da região. Só um ingênuo para acreditar neste ressentido conto de mulher rejeitada.
O relato não deixa de ter seu valor, mais para mostrar que tanto em sociedades indígenas quanto em quaisquer outras, algumas mulheres mantêm artifícios comuns para evitar o comportamento ordinário de muitos homens. No entanto, tentar nos enfiar goela abaixo esta bobagem, e justo n’O Estado de S. Paulo, é que é dose.
Quando um antropólogo nos diz que a cultura indígena está sendo violada pelo contato com “o branco”, o que ele quer efetivamente dizer? Que há um ressentimento pela colonização ocorrida há séculos atrás?
E, já que é usual acusar a “cultura branca” por todos os males infligidos aos índios – embora estes também sejam os que, por vezes, os inflijam –, o que dizer dos seqüestros?
Em julho de 1998, uma equipe da Veja foi seqüestrada por 12 índios armados de espingardas e revólveres[2] (cadê o tacape, conforme a tradição?) que exigiam dinheiro e comida no rio Curuá, um afluente do Xingu. Cerca de quatro meses depois, um fotógrafo brasileiro e um indigenista francês procuravam imagens para um livro sobre a região e também foram vítimas do mesmo grupo. O preço pela sua liberação: 800 reais, 150 litros de gasolina e 200 gramas de pimenta.
Veja bem, há quem diga que a opção pelo seqüestro é também “influência branca”, embora esta tática tenha sido adotada após a Funai ter expulsado garimpeiros da reserva dos caiapós. Isto mesmo: os caiapós arrendavam sua reserva. Dinheiro, comida, roupa, medicamentos é o que cobravam e não vejo erro nisto. O problema é a não regulamentação da prática, o que induz a formação de quadrilhas (por ‘regulamentação’ entendo liberação e não restrição). Foi justamente devido ao afastamento da “influência branca” que os índios se opuseram. Como disse, há índio e índio. Generalizar neste caso não nos permitirá entender o que se passa num país onde cada reserva, cada aldeia, é uma realidade em particular.
LeminguemaniaEm 21 de maio de 1995, foi a vez da Folha de S. Paulo publicar matérias sobre a questão indígena.[3] Bem mais trágica que O Estado, a Folha procurou um tema mais escorregadio, o suicídio nas comunidades. Pelo menos, o jornal acertou ao dar voz a pontos de vistas discordantes. Enquanto o falecido senador (e antropólogo) Darcy Ribeiro justificava o suicídio indígena como conseqüência da “chegada dos brancos e o processo de aculturação por que passam os índios (como) fatores determinantes na onda de suicídios”.
Mas, nem todo antropólogo cai neste clichê surrado. Rubem Almeida, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, é quem diz:
“O que a antropologia sabe sobre o suicídio dos guaranis é o mesmo que se tinha sobre a tuberculose há muitos anos ou sobre a Aids no momento. Ainda não se conhece os reais motivos para isso.”
Quem quer que acuse a “cultura branca” como responsável, deveria se perguntar qual seria o indicativo histórico para que os indígenas adotem este comportamento. Em 1994 foram registrados 22 suicídios entre os guaranis no Mato Grosso do Sul; em 1995, este mesmo número foi atingido no 1o semestre. O curioso é que no Paraguai que faz fronteira com o estado brasileiro e é reconhecidamente um país mais pobre, só ocorrem dois ou três casos por ano. O ato de se suicidar, neste caso, parece não ter bases raciais, étnicas, mas refere-se a uma situação específica da sociedade sul-mato-grossense. Os motivos podem ser vários: desagregação familiar, escassez de terras e trabalho, consumo de bebida alcoólica, etc. Apontar um fator isoladamente é que é temerário.
Os suicídios indígenas começaram a chamar a atenção quando, em 1995, 55 guaranis atentaram contra a própria vida, o que representou uma taxa 40 vezes superior à brasileira (215,7/100.000 habitantes).[4] A hipótese da aculturação como causa do fenômeno é para ser observada com atenção, pois sua definição é um pouco mais ampla do que usada corriqueiramente. A aculturação ou o contato cultural ocorre quando duas ou mais culturas mantêm contato forçado através de conquistas, imposições variadas ou o simples comércio, influência da mídia etc. Da mesma forma que um grupo de imigrantes adota aspectos da cultura hegemônica do país para o qual migraram, também não renunciam totalmente aos seus traços culturais próprios resultando no pluralismo cultural.
[5] No caso dos indígenas e de outros grupos, a aculturação dificilmente é uma via de mão única, sendo afetada também a cultura dominante. Em algumas regiões brasileiras, fortemente influenciadas pela cultura nativa, se torna mais fácil falar no amálgama de duas ou mais culturas que resulta, por vezes, em elementos totalmente novos. A integração, quando ocorre, não se dá, necessariamente, segundo os planos da FUNAI.
Em novembro de 1995, a revista Atenção! (uma espécie de Caros Amigos da época) publicou um artigo falando sobre suicídio na população indígena. “Os índios querem morrer [por que são] expulsos de suas terras pela expansão agropecuária, divididos entre várias seitas e religiões, com as famílias perdendo seus laços, os kaiowás, índios guaranis que vivem no Mato Grosso do Sul, enfrentam nova ameaça: uma epidemia de suicídios.”
Em primeiro lugar, notemos a reincidência de casos no Mato Grosso do Sul, o que denota um problema mais regional que étnico, pois o mesmo fenômeno não se manifesta conforme esta intensidade em outras paragens e aldeias de outros estados.
Realmente, a agropecuária se expande no estado e isto é ótimo, pois se trata do tipo moderno, mecanizado, ligado à produção industrial e não aquela baseada na subsistência (de tradição indígena, inclusive). O problema está em outro lugar: apesar da enorme quantidade de terras, a população nativa não se insere no mercado. Por quê?
Muitas “seitas” e “religiões” é que são as responsáveis pelo freio ao consumo de bebidas alcoólicas pela população indígena. Se um nativo troca seu credo original por outro, evangélico p.ex., isto decorre de sua livre escolha, o que tem que ser endossado.
Perda de “laços familiares”?! Quais? Acaso o autor desta matéria, desavisadamente quer nos fazer crer ser a forma familiar indígena - que, em muitos casos, tem os tios exercendo o poder paterno, ou a poligamia como forma básica - a correta? Se os nativos têm adotado outras formas familiares, mais próximas a nossa, isto é imposição ou escolha? Não vou entrar em considerações morais, mas, materialisticamente falando posso adiantar que a forma familiar monogâmica é, do ponto de vista econômico, mais funcional para a sobrevivência do próprio grupo em uma sociedade moderna. Ou, se ‘moderno’ soar muito politicamente incorreto, uma sociedade urbano-industrial como a nossa. Se, conscientemente, o tipo de sociedade que temos e a forma matrimonial mais funcional do ponto de vista econômico, for conscientemente rejeitada, nada se pode objetar. Mas, daí em diante reclamar da falta de condições de prover a família não pode ser uma opção justa, pois eles próprios optaram pela forma matrimonial tradicional.
Mas, qual não foi minha surpresa ao abrir uma Veja de 1998[6], revelando dados de um massacre no sul do Mato Grosso do Sul onde, alguns dos supostos suicídios (28, se não mais) eram, na realidade, casos de homicídio cometidos pelos próprios índios. A não ser que seja possível que alguém se enforque em bananeiras de 50 cm? Ou em galhos incapazes de sustentar os corpos? Houve casos em que a autópsia não indicou sequer morte por asfixia e ainda havia corpos cobertos por hematomas. Exceto também se alguém acreditar em algum ritual de auto-flagelação antes do suicídio, é absurdo que se o alegue como causa daquelas mortes. Como muitos dos casos de morte relatados são antigos (250 em dez anos), a documentação é falha e a farsa pode ser ainda maior.

Alguns suicídios foram claramente forjados na disputa por terras entre tribos indígenas.

A maioria dos mortos era do sexo masculino entre 16 e 21 anos, idade em que o indivíduo tem direito à posse de um pedaço de terra. O cacique Ramão foi acusado de grilagem de terras e agenciador de trabalho escravo. O detalhe é que ele pertencia aos terena e os mortos aos caiovás. Embora, todos fossem guaranis, a etnicidade por si só, não é suficiente para unir; o que manda são os interesses tribais ou mesmo individuais imediatos. Obviamente, existirão os que acusem aí a “influência branca” que “deturpou” a “pureza selvagem”. Bem mais conveniente do que desmistificar o “bom selvagem” é imputar o “mau civilizado”.
Mas, há uma cota de culpa por esta zorra toda em nossa sociedade, na medida em que esta foi a indutora do contato. Na década de 40, o governo resolveu juntar as tribos para que os terenas, mais avançados agricolamente, “socializassem seu conhecimento”. Socializaram sim e, como em toda forma de socialismo, o primeiro passo é socializar a submissão.[7]
Um famoso texto do antropólogo Pierre Clastres, A Sociedade contra o Estado, apresenta um capítulo – “O Arco e o Cesto” - em que explica a vida tribal em moldes estruturalistas. O argumento visa mostrar como nas sociedades ditas “primitivas”[8] existe uma superioridade nas relações sociais devido à ausência de instituições políticas mais complexas, como o estado.
Clastres descreve então, minuciosamente, o estilo de vida dos nativos em questão, as mulheres coletando alimento com ocesto, e os homens caçando com seus arcos. Ocorre que há dois indivíduos que são “anormais” dentro dessa organização tribal, um homossexual e outro, heterossexual. Este, um péssimo caçador e, provavelmente, míope. O homossexual por sua vez, se integra “muito bem”, exercendo o papel de mulher ao conceder prazeres aos jovens índios, mas o mau caçador tem que se conformar com a atividade de coleta de frutos e raízes, o que faz com desgosto. Simbolicamente, ele coloca a bolsa de forma incômoda, mas que o distingue das mulheres.
Fica evidente para quem leu o texto que o antropólogo louva (julgando a partir daí e, portanto, traindo sua pretensa “objetividade científica”) o homossexual integrado e retrata o infortúnio do homem coletor com certo desprezo. Obviamente senti pena deste, mas mais do que isto: é nele que reside a possibilidade de evolução desta sociedade, justamente, por seu inconformismo, mais que por seu mal-estar. Quiçá suas necessidades farão com que brote a invenção. Tenho consciência de meu wishful thinking, mas será que o antropólogo tinha do seu? Será que tinha consciência que esta “estabilidade” é aparentada da elevada mortalidade, doenças que nunca serão curadas por melhor que seja a pajelança, recursos que nunca serão utilizados ou vislumbrados pelos silvícolas (se mantido o julgamento implícito de Clastres como norma) devido à ausência de qualquer espírito indagativo?Qual modelo de sociedade querem os índios, uma vez tendo experimentado a nossa? É a pergunta que muitos antropólogos deveriam se fazer.
Muitos ideólogos indigenistas justificam o modo de vida tribal como mais “apegado à natureza”, seja lá o que isto signifique.
Quanto a isto tenho duas informações que, para muitos poderão soar reveladoras de quão “natural” é seu meio de vida:

- Segundo o geólogo Luiz Eduardo Mantovani da Embrapa, algumas manchas de cerrado, um tipo de vegetação de savana, encontradas na Amazônia não são naturais. São fruto dequeimadas praticadas pelos índios para encurralar a caça (isto mesmo que vocês leram) ou limpar terrenos para o plantio como até hoje faz o caboclo da região. Mais ainda: não se trata de um processo recente (“de influência branca”, como diriam alguns), “mas praticadas ao longo dos últimos 20 mil a 40 mil anos”. [9]
- Em outras latitudes, William Denevan da Universidade de Wisconsin, uma autoridade em América Pré-Colombiana, afirma que pelos idos de 1492, a atividade indígena na América do Norte modificou a extensão e composição das florestas existentes em sua expansão populacional ao derrubá-las, queimá-las (isto mesmo, leram correto novamente) e plantar os pastos que formaram as pradarias. [10]

Mas, cadê o “modo de vida natural”? Não destruidor e totalmente ecológico dos índios? Mito? Exato, não passa de mito. Se fôssemos tomar sua cultura e métodos como modelos, aí sim não haveria réstia alguma de natureza. Outrossim, seriamos os maiores destruidores ao combinar nossa pressão demográfica aos seus métodos de subsistência “ambientalmente sustentáveis”. Tais métodos de queimada pré-plantio eram adequados em pequena escala, não servem de parâmetro para a sociedade brasileira hoje. Quando em 1998, a imprensa nacional e mundial divulgou o mega-incêndio ocorrido em Roraima por ocasião da agricultura primitiva de coivara, baseada em queimadas, associada aofenômeno natural do El Niño de 1997, logo se falou em causas antrópicas e descaso com o meio ambiente. Lideranças européias e ONGs acusaram o governo brasileiro de incompetência e a história é bem conhecida. Acontece que a área destruída, enorme, era do tamanho do município de São Paulo, mas não da Bélgica como se aventou. Simples, as imagens de satélite mostravam a fumaça que se estendia, como é normal, por uma área bem maior do que os próprios fogos. Quando o mesmo fenômeno ocorre na Califórnia, leste da Austrália ou, recentemente, em Portugal nenhum Greenpeace, ou líder similar ao falecido Mitterrand, é tonto em falar em “incompetência” e 
tampouco alguém é capaz de acabar com o incêndio, mas somente de manejá-lo.
A neomitologia reciclada do bom selvagem não explica o comportamento de 
lemingue de algumas tribos indígenas, não explica também porque em maior número, as populações indígenas são tão ou mais destruidoras do ambiente natural que nós próprios, tampouco explica porque tomam decisões, muitas vezes, equivocadas a respeito de seus vários modos de vida. O endeusamento e mistificação da condição indígena nada explicam porque não partem de uma simples realidade: os índios são gente como a gente, sujeitos a erros e acertos, dependentes de decisões que partem de suas responsabilidades individuais. Os erros são, no entanto, reforçados pela legitimação de seu estatuto legal.
Justiça étnica ou direito alternativo?
Neste tema é fácil de escorregar do julgamento individual para o preconceito coletivo. Assim como nos indignamos com o assassinato do índio pataxó por playboys brasilienses (e que, no mínimo, deveriam ser condenados à prisão perpétua, se esta existisse), não podemos esquecer de casos em que os agressores foram indígenas. E que ninguém seja tolo o bastante para dizer que estou comparando ou criando um score entre crimes de brasileiros e índios. Não é disto que se trata, mas sim de analisar como a justiça pode ser (e tem sido assim) deturpada por conclusões espúrias baseadas em mitologias ou deturpações multiculturalistas. Tampouco se trata de justificar um ato por outro. Não, por favor, mas de mostrar que o responsável por esta ou aquela atrocidade são indivíduos, com rosto, digitais, não “brancos”, “negros” ou “índios”. A etnia deveria ser de pouca ou nenhuma relevância.
O professor de Direito Constitucional, Augusto Zimmermann[11] chama a atenção para alguns fatos ocorridos:
- Em 1980, o chefe Raoni[12] dos Txucarramãe ordenou (e confessou) o massacre de 30 camponeses na Reserva Nacional do Xingu;
- Em 1993, a polícia federal prendeu muitos madeireiros atuando ilegalmente na reserva caiapó, recebendo por isso protestos do cacique Paiakan;
- Um ano antes, o mesmo cacique raptou e estuprou sua professora de 18 anos, com a ajuda de sua própria mulher. E ainda ameaçou que se preso, “sangue branco iria derramar”. Sentenciado a ridículos seis anos de cadeia, o cacique foi absolvido por um juiz amedrontado durante julgamento no qual surgiram centenas de índios armados de porretes;
- Em 2004, 350 índios guaranis invadiram fazendas produtivas no Mato Grosso do Sul roubando gado e provocando incêndio. A justificativa não poderia ser outra nestes tempos de insanidade coletiva em que vivemos: as terras foram roubadas de seus ancestrais quatro séculos atrás;
- Em 2004, o chefe dos Cintas-Larga ordenou o 
assassinato de 29 mineiros em Rondônia, por terem recusado o pagamento de mais propina. O cacique alertava que aqueles assassinatos eram “apenas um aviso” àqueles que explorassem suas terras sem consentimento. Embora, de fato não tenha sido assim, mas um caso de extorsão nitidamente ilegal, posto que os garimpeiros já se encontravam na área com permissão do próprio cacique. E o atual presidente da Funai, Mécio Gomes considerou o massacre dos mineiros uma “coisa normal”, uma vez que sua propriedade fora invadida.
Ao que tudo indica, o estatuto do desarmamento não se aplica a eles, na prática. Desta forma é interessante receber a tutela especial do estado: pode-se tranqüilamente agir ilegalmente sem ser punido e ainda ter os benefícios de não ter que seguir leis ridículas, como o estatuto do desarmamento.
O problema básico relacionado à questão indígena no Brasil é o descompasso existente entre proposição legal e realidade.
Ela passa da idéia de “assimilação gradual” para a esfera dos próprios direitos: as terras indígenas são consideradas como “aquelas utilizadas para suas atividades produtivas, as quais são indispensáveis para a preservação dos recursos do meio ambiente necessários para o seu bem-estar e para a reprodução física e cultural, de acordo com seus usos, costumes e tradições”. Se considerarmos ainda que representam 5% da população brasileira com direito de posse sobre 12% de todo território nacional, os índios brasileiros são os maiores detentores de terras no Brasil.Quantitativamente falando, portanto, não há descaso. O que falta é livre-iniciativa indígena sem privilégios, mas incorporação ao estado de direito já existente.

[1] “Preconceito marca relação entre índios e brancos em Manaus” [e] “Jovem esconde identidade para ser aceita”.

[2] “Seqüestro na selva”. Veja, 9 de dezembro de 1998.

[3] “Suicídios crescem em reservas indígenas” [e] “Índio tentou se enforcar por ‘falta de terra’”.

[4] Yuan - Pang Wang; Carolina de Mello-Santos; José Manuel Bertolote. Epidemiologia do suicídio. Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: Unisa: OMS, mimeo.

[5] JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 52.

[6] “Massacre tribal”. Veja, 27 de maio de 1998.

[7] 
Isto me fez lembrar um caso que li em algum número do Economist. O Kalimatã Oeste é uma província Indonésia na ilha de Bornéu. Por décadas, o governo incentivou a imigração de áreas de altas densidades demográficas do arquipélago para aquele imenso território de povoamento esparso. O objetivo era “desafogar” ilhas como Java e Madura e, de quebra, criar um “senso de unidade nacional” entre os diversos povos do arquipélago naquela área. Os madurenses têm chegado à região desde a década de 30, mas a imigração aumentou particularmente na década de 70. Hoje, de uma população de 4 milhões, eles perfazem mais de 8%.

A população original local – os dayaks -, que já foram nômades, perderam suas terras para os novos habitantes. Gradualmente, eles passaram a ficar à margem dos planos de desenvolvimento econômico para a ilha (Bornéu é, além de tudo, rica em petróleo). Os madurenses estabeleciam pequenas fazendas onde antes era terra dayak e de outros grupos como os malaios muçulmanos e chineses confucionistas. A compreensão limitada dos costumes nativos e crescentes atritos interétnicos por parte do governo local contribuiu em muito para a erupção da violência. Isto persiste até os dias atuais com características de brutalidade (cabeças decepadas são penduradas ao longo dos caminhos...). Mas, como a região não tem um movimento sececcionista (como em Aceh, Irião Ocidental) ou de resistência à ocupação (como em Timor Leste) e se localizar em área erma, não tem merecido maior destaque internacional (com a devida exceção de excelentes periódicos como o The Economist). Provavelmente, estão esperando que morram em “número significativo”.

[8] Embora seja politicamente, cientificamente e antropologicamente incorreto, chamar outras sociedades de “primitivas” ou “avançadas” ao tentar analisá-las, emitindo assim juízos de valor, posso, conscientemente, chama-las de primitivas sem aspas mesmo se, conscientemente, erigir um critério que creio, será consensual: a tecnologia. Endosso a relativização como técnica e método para compreensão da realidade, mas rejeito-a como valor ou objetivo. Sendo assim, posso tentar isentar-me de julgamentos a priori, mas eu seria hipócrita se dissesse que eles não se fazem presentes para mim, e que consciente ou inconscientemente, me ocorre alguma forma de valoração e julgamento moral. Isto não significa, em absoluto, que eu deseje enfiar goela abaixo de algum cacique, valores ocidentais e cristãos, mas que acredito que a assimilação destes lhes faria, em geral, muito bem.

[9] “Origem de cerrados do Pará é contestada”. O Estado de S. Paulo, 17 de abril de 1993.

[10] Jack W. Dini. Challeging environmental mythology: wrestling Zeus. NY: SciTech Publishing, 2003, pp. 8-9.

[11] 
Brazilian Indians: Above Any Suspicion or Law

[12] Em 1988, o mesmo Raoni era bajulado pelo cantor Sting, pelo papa João Paulo II, pelo ex-presidente francês Miterrand, pelo rei espanhol Juan Carlos. Sting deve ser um filantropo com problemas de foco, pois em 1999, levantou cerca de US$ 1,5 milhão para os caiapós, 
embora estes já fossem milionários.

Leia também: 
Todo dia é dia de índio - parte I.

O autor é professor de Geografia no Ensino Médio e Pré-Vestibular, formado pela UFRGS.

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