Artigo que escrevi inspirado em um dos melhores livros que já tive o privilégio de ler, O Homem e o Mundo Natural de Keith Thomas:
Quando era garoto, na periferia de Porto Alegre onde me criei, havia uma espécie de limbo entre o meio urbano e o rural. De meu edifício de quatro andares, eu avistava um campo onde os bois e vacas pastavam. Não havia uma transição gradual como na maioria de nossas cidades atuais, era abrupta. Acostumei-me tanto a esta paisagem sui generis que ao avistar as paisagens citadinas de hoje, sinto um estranhamento pelo que, na realidade, é “normal”. Como dizia, hoje nosso espaço é marcado por uma espécie de continuum urbano, que vai dos sobrados do centro histórico aos edifícios espelhados do centro expandido, passando por áreas decadentes, chegando nos bairros que contrastam miséria arquitetônica e infra-estrutural com um luxo cercado por uma moderna e quase medieval barreira que, behavioristicamente, simplesmente nos esquecemos de nossa “natureza”. Mas, aí acabo de tocar numa palavrinha que gera um verdadeiro “rebu” na filosofia... O que, afinal de contas, é a “natureza humana”?
Nem sou louco de começar esta conversa. Nem com muito uísque e baforadas de meu Dunhill chegaria a algum lugar. Mas, lembrando do saudoso Popper, não nos cabe ao propor uma tarefa de entendimento da realidade perguntar, metafisicamente, o que é a vida? Mas, sim como ela funciona? Neste sentido, é que recomendo um dos melhores livros que já tive a oportunidade de ler em meus 40 e tantos anos: O Homem e o Mundo Natural de Keith Thomas, em que este arguto historiador analisa nossas sensibilidades e práticas com relação aos outros elementos da natureza do século XVII ao XIX.
Há duas razões por que vale a pena lê-lo. A primeira se refere a atual coqueluche ambientalista mundial, que muitos atribuem a ascensão da ecologia como ciência. Não, vem de antes, muito antes para dizer a verdade. Outra se refere ao que é, ou ao menos o que deveria ser, um verdadeiro estudo de História por que baseado mais em fatos do que teorias... Thomas mostra como nosso sentimento atual em relação à natureza vem, em grande medida, da Inglaterra Vitoriana. Período e local histórico de intensa urbanização, que gerou sentimentos de frustração, especialmente, de literatos, poetas, utópicos, em geral, que começaram a expressar nas letras uma saudade do mundo que se ia embora. A intensa atividade nas crescentes urbes e o sumiço do canto dos pássaros e suas bucólicas paisagens campestres chamavam a atenção desses escritores. Só que o detalhe curioso é que muitos deles, realmente, não tinham vivido tal mundo, muito menos os duros afazeres da vida campestre. E é precisamente nesta medida que pintavam uma realidade tão idílica.
Em época anterior foi nesta mesma paisagem, mais real do que mental, que nobres ingleses criaram a raça de cão buldogue para matar touros na arena. Escapando das guampas por serem de baixa estatura e pulando com suas fortes patas grudavam suas mandíbulas hipertrofiadas no pescoço dos touros fazendo-lhes sangrar até o último suspiro. Este mundo alterou sua sensibilidade sim, mas justamente com o desenvolvimento dos costumes ligado à mesma corte que antes se deliciava com o chão salpicado de sangue.
Recordo-me agora quando uma das vacas que pastavam em frente a minha morada passou pelo cerca de arame farpado corrompido. A gurizada se atiçou toda e cada um queria ser o melhor na pontaria. Quando enxerguei o animal, seu rabo pingava sangue nas lajes de granito da calçada. Naquela época, eu, um “garoto de apartamento” daqueles com pouca vivência nas ruas ficara embasbacado sem entender o que acontecia. Minha “natureza” era diferente? Minha “essência” era outra? Nada disto. Eu só tive mais freqüência em frente à TV, na qual via Rin Tin Tin e vários desenhos da Disney ou Hanna-Barbera com seus personagens, animaizinhos antropomorfizados. Talvez esta tenha sido a primeira vez que me “relativizei” na minha tenra vida, que me coloquei no lugar do bovino com a cauda encharcada de sangue.
Portanto, não seria um suposto “retorno ao natural”, o que nos tornaria mais “humanos”, como querem nossos novos arautos da metáfora ambientalista. Foi tão somente uma sensibilização que teve data, local e autoria de nascimento que me permitiu, assim como a muitos hoje em dia, pegar e reprimir um moleque daqueles. Não foi uma essência que me fez, não foi um retorno que me orientou, foi um aprendizado.
Quando vejo que em Santa Catarina, onde resido, ainda se cultua a estúpida e covarde “farra do boi”(1) não concluo que se trata de uma “sociedade bárbara”. Não, nada disto, mas sim uma sociedade que ainda não atravessou sua “revolução vitoriana”.
Hail to England!
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(1) Mesmo que, hipocritamente, se mude seu nome.
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Também é a escassez que valoriza a paisagem, Anselmo, não é por acaso que a sensiblidade pela natureza se alastra quando começam a expadir-se as grandes cidades, e a paisagem rural se esfumaça.
ResponderExcluirAqui no Brasil,até uns trinta anos, se falava no"mato", que era um foco de cobras e mosquitos.Hoje se fala na "mata", que é uma coisa bela, a preservar.
Também vivi essa mudança abrupta entre cidade e campo, na Porto Alegre dos anos 70.Hoje, um cinturão degradado estende essa transição.
A distância do trato rural facilitou também a consciência sobre o trato aos animais, vistos como “coisas” por uma sociedade à qual davam muito trabalho para cuidar,e que dependia muito deles para aplacar a fome.
Lembro-me quando se falava das tartarugas "aquele bicho feio com cabeça de cobra" e hoje é um belo símbolo da natureza a ser preservada, com direito a vendas de bichinhos de pelúcia nos quiosques do Projeto Tamar. E assim vai, a mudança da sensibilidade humana, para melhor. O que já se pode ver, inclusive, com protestos de coreanos e chineses, ainda que embrionário, pela morte de cães como fonte de alimento.
ResponderExcluirAnselmo, a maioria das pessoas simplesmente têm uma visão equivocada do que era a vida no campo até uns trinta anos atrás,antes da mecanização, do uso extensivo de fertilizantes, defensivos, etc. Ainda é assim em lugares mais atrasados.
ResponderExcluirAté os anos 50, ainda não havia refrigeradores,e a conserva de alimentos era precária.Até início do século passado, mesmo na maioria da Europa era comum a fome, particularmente nos anos de má colheita.
Nem se fale dos índios, caçadores-coletores, quase sempre lutando contra a fome ea doença. Não é por acaso que num país do tamanho do Brasil se estima que vivesse entre um e dois milhões de indivíduos. Esse era o clímax a que se podia chegar com aquele meio de vida.
A visão idílica que as pessoas têm de um passado distante, são memórias falsas de um tempo que nunca existiu.
Hoje, com luz elétrica e todos os recursos, a vida no campo é outra coisa.E devido à falta de recursos naturais nas cidades,é possível querer e poder viver as delícias da natureza no conforto.