Há quem não acredite nas bruxas, mas afirme que elas existem. Esta parece ser a premissa dos teóricos do Foro de São Paulo... / Imagem: wallcoo.net |
Foro fora de foco
-- por Anselmo Heidrich
Após o período
de manifestações que sacudiram o país em junho passado, qual foi nosso saldo?
Vinte centavos economizados? Brincadeira a parte, não ficou claro qual teria
sido o objetivo e resultado disto tudo, sobretudo para quem não é brasileiro e
um tanto orientado sobre os acontecimentos da política nacional, bem como a
percepção política e ideológica de nosso país. Para se entender melhor a
dificuldade de entendimento que possa atingir um estrangeiro lembre-se de outro
país, também considerado emergente, cujos protestos ao seu presidente, Erdogan
se iniciaram devido a uma interferência urbanística em Istambul, a maior cidade
da Turquia. Interferência esta que versava sobre uma singela praça. Como é que
é? Sim, este foi o estopim, mas claro que esta não é a situação cuja combustão
foi iniciada por uma simples interferência urbanística. O que chama atenção
neste caso são as duas ordens de causas, a imediata, como a 'revitalização' de
um parque público na cidade de Istambul enquanto que, no fundo, a população que
protestou era movida contra a “islamização sutil” do país.[1] No
Brasil, muitos que aderiram aos protestos nunca teriam se movido por 20
centavos de aumento na tarifa de ônibus, mas aproveitaram a deixa para incrementar
os protestos com suas próprias plataformas individuais.
Dentre os
motivos de protestos que se avolumaram no Brasil, de um simples aumento da
passagem de ônibus em São Paulo até a revisão do código penal, como a posição
favorável à redução da maioridade penal, o que se viu foi um variado espectro
de demandas, da esquerda estudantil, comandada pelo PSOL e PSTU até o clamor
conservador. É um pouco difícil definir até onde vão as manifestações na
internet e onde começam nas ruas, mas parece inegável a ligação entre uma e
outra. Destas, uma chama atenção por se tratar de um tema nitidamente
internacional, o “Foro de São Paulo”.[2]
Esta organização
criada pelo Partido dos Trabalhadores em 1990 tinha como objetivo agregar
governos latino-americanos descontentes com as ditas reformas neoliberais que
se encontravam, supostamente, em crise devido às “próprias contradições do
sistema capitalista”. Com o objetivo de assegurar um “giro à esquerda” na
América Latina, se impunha a necessidade de elaborar estratégias práticas para
tanta diversidade nas formas políticas assumidas pelos aliados. Como se lê na
página do próprio Foro de São Paulo:
Embora
costumem lançar mão, cedo ou tarde, da violência militar, as classes dominantes
de cada um de nossos países e o imperialismo investem cotidianamente na luta
política e ideológica, para o que contam com um imenso aparato educacional, uma
indústria cultural potente e o oligopólio da comunicação de massas. A partir
destas plataformas, buscam entre outros objetivos manipular a seu favor as
diferenças estratégicas e programáticas existentes entre os governos, partidos
e movimentos empenhados no “giro à esquerda” que nosso subcontinente vive desde
1998.
Alguns
destes governos, partidos e movimentos declaram abertamente seu objetivo de
construir o socialismo. Outros trabalham, assumidamente ou não, pela
constituição de sociedades com alta dose de bem-estar social, democracia
política e soberania nacional, mas nos marcos do capitalismo. Importantes
setores, embora integrantes de partidos de esquerda, adotam premissas
neoliberais. Há também profundas diferenças estratégicas acerca das formas de
luta e vias de tomada do poder, bem como sobre qual deve ser a relação dos
governos eleitos com as classes dominantes de cada país, da Europa e dos
Estados Unidos. Igualmente são distintas a visão e a postura frente aos
chamados BRICS. Tais diferenças programáticas e estratégicas tornam
particularmente complexo o debate sobre a natureza e o papel dos governos
encabeçados por presidentes integrantes dos partidos de esquerda e
progressistas de nossa região.[3]
Neste pequeno
excerto se percebe no primeiro parágrafo uma nítida avaliação da conjuntura nos
moldes marxistas. Para dizer a verdade, mais leninista que marxista. Lendo isto
nem parece que temos uma diversidade de mídias e opiniões em nossa sociedade,
mas um comitê reacionário empenhado em sufocar qualquer processo de mudança ou
reformas sociais que precisa ser urgentemente combatido. O segundo parágrafo,
por sua vez, mostra de forma evidente que o que se chama de “partidos de
esquerda e progressistas” apresentam uma união presumida e um rótulo
identificador, enquanto que na prática são tão diversos quantos os cenários
culturais do subcontinente. Não há como, porque “trabalham (...) pela constituição
de sociedades com alta dose de bem-estar social” presumir que sejam de
‘esquerda’. Até parece que a diferença com relação ao que também se chama,
genérica e imprecisamente, de ‘direita’ seja o objetivo de desenvolvimento. É
como se a ‘esquerda’ fosse a única detentora deste objetivo... A diferença,
quando se mostrou nítida ao longo da história sempre foi mais de método do que objetivo. Sejam agremiações de esquerda ou direita, cada um a seu
modo, geralmente se declaram a favor do desenvolvimento.
E o que diriam
os opositores desta agremiação? Como eles avaliariam a situação atual em
relação ao sucesso do empreendimento chamado Foro de São Paulo? Um modo de
entender o que acontece é mudar o nome do que se quer entender... Ao invés de
procurar se entender o porquê da crise econômica do século XXI fica mais fácil
de chamá-la de socialista, isentando o capitalismo de qualquer responsabilidade.
Se vocês me entenderam, o que temos aí é proposital, pois grandes grupos
estariam aliados ao governo para provocar uma crise que demandaria maior
intervencionismo estatal, daí a raiz (e fim) socialista. Isto é a típica teoria
conspiratória. E é análoga a que faziam as esquerdas promovendo a ideia de que
toda e qualquer crise era produzida pelo capitalismo, com o fim precípuo de
gerar maior empobrecimento da população para, por sua vez, maior enriquecimento
de elites. Na verdade, o raciocínio de ambos os grupos, esquerda no passado e
esta nova direita é exatamente o mesmo. O que eles fizeram foi apenas mudar os
nomes dos agentes e suas posições. O que era uma “cúpula capitalista” vira uma
“cúpula socialista”, o que se tinha como objetivo aumentar a exploração pública para fins privados permanece praticamente
o mesmo, sendo que apenas mudam o verbo explorar
por intervir. O léxico pode se
diferenciar, mas o método argumentativo é gêmeo.[4]
A verdadeira
oposição a isto deveria se pautar na realidade, nos fatos. O que o
ex-presidente Lula disse em uma reunião desta agremiação dá uma mostra da
ineficácia em que se encontram seus propósitos:
"— Pelo fato de a
esquerda estar enfraquecida na maioria dos países do mundo, a América Latina
pode, neste momento, ser o grande farol para a nova esquerda que queremos criar
para o mundo. A esquerda europeia perdeu o discurso porque ficou muito
semelhante ao discurso da direita — disse o ex-presidente Lula."[5]
Se for assim,
então esta agremiação de governos de esquerda não tem nenhuma eficácia mesmo. Tomemos
o Chile como exemplo, que antes do atual presidente, Sebastián Piñera teve
Michele Bachelet, auto-proclamada ‘socialista’ que em 2010 promulgou uma lei
que obrigava as autoridades de seu país a declarar sua renda e bens
publicamente. O que há de socialismo nisto? O que mais me impressiona é que com
variantes de direita ou de esquerda, as instituições do país parecem tão
sólidas que o caminho do desenvolvimento se encontra plenamente traçado.[6]
Pensemos então
no Equador, cujo presidente Rafael Correa desde 2007 no poder se reelegeu como
outro representante das esquerdas. O que, efetivamente, fez em termos de
fomento à atividade econômica em seu país? Vejamos: em que pese a redução da
pobreza apoiada na criação de empregos, seu fomento vem da exploração de
petróleo. Assim como outros petro-estados, uma vez que a oferta da commodity
aumente no mercado internacional e seus preços caiam, este governo seguirá o
caminho de outros (Irã, Venezuela etc.), cujos estados não terão condições de
arcar com os gastos sociais a que estão regularmente submetidos e,
provavelmente irão sofrer com o aumento de suas dívidas públicas.
Apesar do
aumento da ingerência estatal na economia, o governo equatoriano acaba de
aprovar uma lei que flexibiliza as condições de exploração mineral no país para
atrair investidores, para descontentamento de grupos indígenas e ecologistas.[7]
Agora vejamos o que defendem os porta-vozes do Foro de São Paulo neste assunto:
Puede afirmarse, por tanto, que la crisis actual del capitalismo es el mejor momento para su sustitución por el socialismo mediante la lucha revolucionaria, que es en primer lugar (según se desprende de la concepción leninista sobre la actualidad de la revolución – antes explicada –) un deber de todo revolucionario, independientemente de que el sistema esté o no en crisis. Por otra parte, siendo el socialismo la única alternativa revolucionaria posible al capitalismo, y siendo el neoliberalismo el único capitalismo posible en la era de la Revolución Electrónica y la resultante crisis de la intermediación, que es entre otras cosas la del papel protagónico del Estado en la economía (tanto en el socialismo como en el capitalismo), la única alternativa revolucionaria posible al neoliberalismo no es un capitalismo de algún tipo diferente, sino el socialismo, que según se ha visto, puede ser construido aunque no estén creadas las condiciones adecuadas. Por lo demás, cualquier otra opción implica la existencia de plazos que no existen, pues debido a la crisis ecológica, la vieja disyuntiva planteada por Rosa Luxemburgo entre socialismo y barbarie se plantea en estos tiempos entre socialismo ahora, o fin de la especie humana para siempre; entendiendo por socialismo el orden de cosas resultante del cambio revolucionario, que es sistémico-político (ejercicio del poder por las clases populares – de forma directa en la época actual – ), estructural-económico (socialización de la propiedad y peso creciente de los estímulos morales y colectivos para el trabajo y la actividad humana en general) y civilizatorio-cultural (de ser transformada la naturaleza por el ser humano en beneficio propio, a transformarse éste a sí mismo en beneficio de la naturaleza a la cual pertenece como ser biológico).
Não há para eles
um “capitalismo de outro tipo” senão o socialismo mesmo e sem relativismos de
ordem semântica, pois o autor deixa claro o que entende por ele, mudança
revolucionária no sistema político, estrutura econômica com a socialização da
propriedade. Também não se trata de dar um passo para trás e outros dois para
frente quando, na verdade, os autores do suposto processo revolucionário estariam
dando de marcha a ré desde que iniciaram seus governos. Claro que esta não é a
situação da Bolívia, dominada por Evo Morales e a Venezuela dos bolivarianos,
mas qual o estado atual desses países?
A Bolívia passou
os últimos anos com crescimento de renda per capita capitaneado pela
valorização de suas commodities no mercado internacional, o que possibilitou a
nacionalização de ativos estrangeiros por Evo Morales.[8]
Apesar desta estratégia, a expansão subsidiada de eletricidade não tem sido bem
sucedida quanto à oferta de água. E o ciclo internacional de valorização das
commodities corre o risco de esfriar devido à retração do crescimento chinês e
os efeitos da crise sobre a economia européia.
A situação da
Venezuela por sua vez é bem conhecida: escassez de itens básicos, inflação em
alta, corrupção generalizada e violência crescente.[9]
Creio que não eram bem estes os objetivos da “revolução bolivariana”... A
Argentina de Cristina Kirchner segue em seu movimento de inércia. Sua política
externa se resume a levantar barreiras alfandegárias e estimular o
protecionismo tragando junto quem o apóia para um buraco negro diplomático.[10]
Nada de novo, mas isto é decisivo para o fracasso do Foro de São Paulo.
Quando a Guerra
Fria estava em seu auge, a extinta URSS tratou de criar uma organização
econômica que ligasse seus membros por algo mais que a força dos tanques
soviéticos, o Conselho de Assistência Econômica Mútua, C.A.E.M. ou COMECON, na
sigla em inglês. Este bloco econômico visava promover a troca de produtos entre
seus membros, mas sobretudo a assessoria técnica e de planejamento centrado nas
mãos de burocratas soviéticos. O que chama atenção é que o Foro de São Paulo não apresenta sequer algo assim. Com a política
externa protecionista de seus membros, “anti-entreguista” como gostam de
chamar, não apresentam força enquanto bloco, simplesmente porque seus laços
econômicos não são proporcionais às intenções e retórica políticas. Tentativas
de intensificar as “relações sul-sul” não lograram êxito porque, para serem bem
sucedidas elas tem que se pautar justamente por critérios clássicos rejeitados
pelas políticas econômicas de seus membros, como o aumento de produtividade e a
busca por competitividade. Com uma China investindo fortemente nas plantas
mineradoras africanas, com a economia americana retomando o rumo de seu
crescimento e, o mais importante, a consolidação do mercado comum na bacia do
Pacífico, a APEC,[11] os
intentos dos foristas de São Paulo com ecos de Bandung estão condenados ao
panteão dos anacronismos econômicos do século XXI. Crer que os membros do Foro
de São Paulo têm força e eficácia é dar mais importância para um espantalho que
as gralhas e os paranóicos desejam.
...
[1]
BBC Brasil. Protestos contra o governo se espalham pela Turquia. Disponível em:
<http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/06/130601_turquia_atualiza_fn.shtml>.
Acesso em: 10 set. 13.
[2]
Opera Mundi. Às vésperas de encontro, Foro de SP é alvo de ameaças de grupos
direitistas. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/29939/as+vesperas+de+encontro+foro+de+sp+e+alvo+de+ameacas+de+grupos+direitistas.shtml>.
Acesso em: 10 set. 13.
[3]
Foro de São Paulo. Declaração Final dos Encontros do Foro de São Paulo
(1990-2012). Disponível em: <http://forodesaopaulo.org/?p=2787>.
Acesso em: 3 set. 13.
[4]
Um dos inúmeros exemplos encontrados na rede: Antiforo de São Paulo. A segunda
crise do socialismo. Disponível em: <http://antiforodesaopaulo.blogspot.com.br/2011/10/segunda-crise-do-socialismo.html>.
Acesso em: 3 set. 13.
[5]
O Globo. No Foro de SP, Lula defende que América Latina seja o ‘farol de uma
nova esquerda’. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/pais/no-foro-de-sp-lula-defende-que-america-latina-seja-farol-de-uma-nova-esquerda-9337397>.
Acesso em: 3 set. 13.
[6]
América Economía. Chile: Bachelet busca mejorar la calidad de la política.
Disponível em: <http://www.americaeconomia.com/politica-sociedad/politica/chile-bachelet-busca-mejorar-la-calidad-de-la-politica>.
Acesso em: 3 set. 13.
[7]
América Economía. Congreso de Ecuador aprueba polémicas reformas a Ley de
Minería. Disponível em: <http://www.americaeconomia.com/negocios-industrias/congreso-de-ecuador-aprueba-polemicas-reformas-ley-de-mineria>.
Acesso em: 5 set. 13.
[8] The Economist. From tap to socket. Disponível
em: <http://www.economist.com/news/americas/21569707-can-government-do-better-job-private-sector-tap-socket>.
Acesso em: 6 set. 13.
[9]
BBC Brasil. O legado de Chávez: os prós e os contras. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/03/130306_chavez_argumentos_pro_contra_rw.shtml>.
Acesso em: 11 set. 13.
[10]
O Estado de S. Paulo. Vexame em São Petersburgo. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,vexame-em-sao-petersburgo-,1071851,0.htm>.
Acesso em: 11 set. 13.
[11] Wall Street Journal. APEC Shows the
Way on Trade. Disponível em: <http://online.wsj.com/article/SB10001424127887324874204578436061582790802.html>.
Acesso em: 11 set. 13.
Anselmo: Este texto tem que ir para o livro.
ResponderExcluirAbraço
Fernando R.
Obrigado, Fernando. Realmente há textos naquela lista que já não mais me agradam tanto. Valeu.
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