Não existem em essência “interesses coletivos”. Todos interesses são, no limite, interesses privados. Mas, não raro, quando se demanda por maior força política ocorre a arte da associação. Se eu tenho interesse que meu bairro, localizado em uma área que recentemente deixou de ser rural tenha calçadas, isto vai depender de minha comunicação com os representantes políticos locais e/ou com a própria população. Se esta não demonstrar interesse nisto, terei que me esforçar por convence-la de sua importância. Do contrário, simplesmente não atinjo meu objetivo e fica comprovado que meu interesse particular não encontrou sintonia com o de outros.
Não há neste caso, um interesse coletivo que deixou de ser atingido. A coletividade em questão não achou interessante minha proposta individual, provavelmente por que outros indivíduos têm outras prioridades. O termo “coletivo”, no entanto, goza hoje de um favoritismo, como se fosse o certo ética e politicamente falando. Não é assim. Torna-se mais fácil pensarmos em uma lógica de ação coletiva quando não dispomos do referencial teórico de uma verdadeira democracia liberal. Em uma economia altamente oligopolista como a nossa em que alguns setores empresariais não têm no estado a necessária isenção de interesses políticos e sede por propinas, mas sim um corruptor, se sabe de antemão que jogar segundo preceitos individuais e de livre-mercado é como seguir os Dez Mandamentos numa Sodoma. O mecanismo público de apropriação dos interesses privados que se tornou mais conhecido em nossas latitudes como a malfadada “Lei de Gerson” é uma deturpação do liberalismo e não seu endosso. O que deveria existir para regular os interesses, apenas perverte.
O tão alardeado fracasso da “democracia burguesa” em prol de uma tão utópica quanto nefasta “democracia popular” se constitui em um estelionato sociológico de raciocínios totalitários. Primeiro por que a democracia não é “burguesa”. Burgueses, assim como quaisquer outros grupos têm no regime democrático seu lugar. A raiz do problema está na promiscuidade entre um poder público e os direitos (e deveres) privados, o que se chama patrimonialismo.
Costumamos associar esta perversão só na entidade todo-poderosa chamada de “estado”, esquecendo-nos que ela é, em última instância, um reflexo do que somos como sociedade… Por ocasião da greve da USP, um estudante me disse que “um dos princípios da democracia é o direito de greve”. Pois sim, mas também é um de seus princípios, intocáveis, o de “ir e vir”. Como manter aquele em detrimento deste quando professores e alunos que não simpatizavam com a causa são impedidos de entrar em suas salas de aula? Tão lícito quanto o direito à greve é o de não participar da mesma.
O que não se considera na ação de um agente corruptor incrustado em algum órgão público ou em um militante socialista que finge estudar para se aplicar na política estudantil, é que nossa civilização se apóia, mais do que no conceito de propriedade privada, na idéia de um contrato social. Este pode ser quebrado desde que assumidas determinadas conseqüências. Se eu não quero cumprir com minhas obrigações trabalhistas, este é um direito meu, mas devo saber que sofrerei algum tipo de sanção, que terei que arcar com os efeitos de meus atos. Simples.
Nenhum direito no caso pode subverter o direito à liberdade, que foi o que se viu na greve dos estudantes da USP. Diga-se de passagem, insuflada, pelo sindicato dos funcionários, o SINTUSP.
Ocorre que a mentalidade de sindicatos não se pauta pela lógica de mercado que é, antes de tudo, uma ação coletiva cujos interesses são privados. Se a greve, realmente, tivesse o endosso da maioria, por que não deixar, justamente, esta suposta maioria decidir por si própria se queria ou não ter suas aulas? Por que o temor? O raciocínio sindical não parte da premissa do livre-arbítrio, ele procura anula-lo tal qual um corruptor procura anular a competição em seu próprio favorecimento.
Democracia pressupõe conflito sim, mas um conflito regulado (e regulamentado) por regras transparentes. No fundo, o que fazem os arautos da “democracia direta” ou da chamada “democracia participativa” é transformar a própria democracia numa “soma de opiniões ignorantes”.
A idéia subjacente é que não deve haver governo (“si hay gobierno, soy contra”), todos devem tomar o estado de direito de assalto e, posteriormente, perante uma anarquia reinante, sugerir um governo sim, porém despótico. Nada de doutrina de governo, mas que se doutrinem indivíduos para um governo alheio a eles, parece ser seu mote. Subverta qualquer arranjo institucional em nome de um vago conceito de “ação direta”. Para meliantes deste naipe, as instituições são apenas blocos de poder em que indivíduos não atuam, se submetem. Mas, o que eles fizeram senão submeter os que não concordavam?
O pior é que democracia pressupõe também uma antítese da insociabilidade. E, behavioristicamente, falando, o que mais se viu, foi a manifestação por parte dos estudantes, de um comportamento de matizes totalitárias. Em que pese seu adjetivo preferido: o “social”. Social isto, social aquilo, não teve na realidade nada de “social” em ameaçar aqueles que pleiteavam um raro desejo no Brasil, o de estudar.
Os socialistas gostam de chamar nossa democracia de “burguesa” confrontando-a com uma mágica democracia socialista. Ora, democracia é democracia, que me perdoem a tautologia. E ela não pode ser contraditória, isto é, que pressuponha a eliminação da própria liberdade de expressão, de comércio, de direito à propriedade etc. A democracia não subsiste também sem o republicanismo que separa a coisa pública (res publica) da propriedade privada. As duas são necessárias e devem ser bem definidas para que nenhuma suplante a outra.
No Brasil, só se começou a falar em democracia como princípio absoluto, em nossas academias plenas de marxismo, a partir dos anos 80, quando o socialismo moribundo da Europa já dava seus sinais mal cheirosos de putrefação. A incorporação do conceito por eles é recente e mal compreendido. Tal qual os corruptos do governo ou os que se beneficiam deles, nossos estudantes grevistas destroem cotidianamente a base da sociedade democrática ao misturar seus interesses privados com o que deveria ser comum a todos, a liberdade de opção.