Seria bom te ver todas as manhãs em todos esses dias que quase perdemos a alma em todos esses dias pós-quimioterápicos nos quais os cães pararam de correr pararam de uivar e pararam de caçar seria agradável sentir a chuva anunciando uma nova estação com os pássaros marcando terreno nos galhos com sua algazarra seria bom saborear um copo de whisky gelado ao cair da tarde tendo apenas o som dos cubos de gelo no fundo como fundo seria agradável viver sem se preocupar com apagar as luzes porque elas sequer foram acesas quantos dias se passaram desde que tu nasceu e preencheu nossas vidas e nem entendemos como foi que não te quisemos antes, não te fizemos antes estivemos afundados em um poço sem luz quanto mais nos debatíamos para sair mais escuro se tornava mais frios meus pés ficavam nenhuma lã bastava nada desmaiando no metrô cada vez mais rápido e meus olhos não acompanhavam nada desespero foi vencido pelo cansaço e a esperança não passava de um movimento de inércia sem início ou fim apenas meio apenas durante vivo sim tão vivo que a solidão dos que foram não te deixa ver a continuação quantas agulhas me foram cravadas para perder minha imaginação e minha fé só via liberdade numa fuga de lugar para lugar passando pelas ruas e avenidas meu rosto refletido em inúmeras vitrines minha sombra deitada e deformada em várias calçadas um baixo pulsante como um baixo pulsante me conduzindo sem saber sou levado numa linha errática pelo universo sem saber para onde vou, sem saber quem me leva e o que me leva tu nasceu em 30 de abril por ti larguei meu mais saboroso vício por ti acordei para viver um sonho se a vida traz suas armadilhas agora percebo como fui vítima várias vezes e de ti não quero mais me libertar não preciso de mais nada do que tive como controle as pessoas buscam vitórias sobre batalhas imaginárias tencionam vencer a guerra de suas vidas se ancoram em portos para fugir de águas turbulentas se apóiam em mitos em filosofias zen em falsas morais em estruturas ideológicas em partidos políticos em carros com bancos de couro em subdividões em repartições, em bairros em CEPs mas eu não preciso disto nos não precisamos disto nos temos a ti tu vive entre nós e eu te ergui na Lagoa do Peri, te levantei para o Sol te lancei no ar e tu desceu na lâmina d’água com teu sorriso, com a força de teu rosto tu submeteu a Terra e tuas mãos tocaram a lama, cavaram ela tornaram fofa com destreza ternura e sentido.
Quanto tu
nasceu, meu filho, nós, eu e tua mãe reconquistamos um sentido para nossas
vidas.
Quando soubemos,
ela ganhou um sorriso no rosto. Incrédula. Como se uma luz descesse e
iluminasse teus passos, mamãe. Com os braços abertos, eu te recebi. Com minhas
mãos eu te segurei e minhas córneas umedeceram. Calma, tudo vai dar certo... Até hoje eu digo, com medo que este
sonho tornado realidade esvaneça, como a fumaça de fogos, cujo rito imaginário
nos aquece e não podemos mais viver sem seu calor. Sem o teu calor, meu filho.
Cada gripe, cada
tosse, cada queda, eu tremo e me desespero. Finjo calma para que te levantes,
finjo superioridade para que tenhas algum exemplo, te reergo com a promessa de
te ajudar a andar e torço para que me fite nos olhos e me peças um abraço levantando
teus grandes bracinhos, tuas mãos grandes, teus ombros largos.
Eu quero te
mostrar meu amor, eu quero te mostrar este mundo, eu quero te fazer feliz, mas
tudo que sei com certeza é que vou ter que ser alguém melhor. Tudo que sei é
que tua presença me faz querer ser algo que nunca fui. Minha persistência e
teimosia foram fortes, mas sempre calcadas em mim. Dessa vez a luta
será mais difícil, mas de algum modo sei que terei combustível. Sei que não irei
desistir, que sempre estarei te esperando para segurar, até que um dia não caia
mais. E o misto de riso e choro se torne uma palavra. Que tu possas segurar
outro pequeno grande homem como eu.
E, caso percas
tua fé... Que possa reconquistá-la.
Muito lindo o texto. É isso aí, amigão.
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