quinta-feira, setembro 22, 2016

O Estelionato Pedagógico da BNCC – 02




Tem algumas mentiras brabas aqui nesta matéria:
Polêmicas do novo currículo de história serão temas de seminários #G1
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2016/01/polemicas-do-novo-curriculo-de-historia-serao-temas-de-seminarios.html?utm_source=twitter&utm_medium=share-bar-desktop&utm_campaign=share-bar
Em primeiro lugar, não há nenhuma dedução lógica de que as desigualdades sociais diminuirão porque o país adotará um currículo comum em todo o território nacional. Até pelo contrário, se tais desigualdades existem e devem ser tratadas por políticas públicas, estas devem se diferenciar com o intuito de igualar os desiguais. Uma coisa é uma igualdade jurídica, outra bem diferente é querer que os diferentes estratos econômicos e sociais tenham o mesmo tratamento ao ponto de ignorar suas particularidades regionais e socioculturais.

Em segundo, pelo que sei os currículos são múltiplos e variados, sobretudo em países com grande diversidade regional. O que existe no sentido de homogeneização é uma postura de alguns grupos que querem impor uma visão de mundo sobre os diversos municípios, cidades, estados etc., no sentido de restringir as opções de ensino. Se certo ou errado em seus conteúdos é outra questão, mas o que não se pode é achar que alguém detém a solução mágica para o currículo perfeito como se tirasse o coelho da cartola.

O que me impressiona é a sucessão de fatos sem nexo, se o ex-ministro da educação, Renato Janine Ribeiro apresenta um documento e depois, já desempossado admite falhas sem sequer fazer uma defesa do mesmo, o que me passa a nítida impressão de que ele não leu e nada mais fez que terceirizar sua confecção.

Assim como a desculpa esfarrapada do MEC, de que se limitou ao papel de “condutor do processo” e não de autor do documento. Ora! Quem foi que autorizou sua impressão? Não tem o selo do ministério ali, como uma assinatura? O selo do MEC vale a mesma coisa que nada? Se autorizou, consentiu, se consentiu, dá no mesmo que ser autor ou coautor, que seja. E depois dizer que não há viés ideológico ao tratar de minorias é palhaçada. Claro está que se eu opto por um grupo étnico ou região do globo em detrimento de outros e outras, eu estou fazendo uma opção deliberada por um ponto de vista, pela percepção e enfoque neste grupo. Eu fico me perguntando o que esse povo entende pelo termo ideologia... Denis Mizne, da Fundação Lemann diz que há “uma visão de mundo por trás do currículo de história em qualquer lugar”, mas que “a necessidade de um currículo é uma coisa que não é uma questão ideológica”. Espere aí! Por trás do currículo atual existe uma visão de mundo, o que os filósofos alemães chamavam de weltanschauung, mas quando se pensa em mudar isto do ponto de vista formal, sob orientação governamental não é outra senão apenas “avançar em educação”. Por que temem a sinceridade? Basta assumir que tem um projeto calcado em uma visão de mundo. Mas a hipocrisia é forte... Ao mesmo tempo que Mizne diz que “não é a visão do governo”, mas “um documento que está em debate, que vem da sociedade”, ele quer que ignoremos que esta “sociedade” são grupos com esta visão ligados ao governo federal. Só que assumir isto implicaria em assumir uma mudança de narrativa, ora vejam só... Ideológica? Não é impossível encontrar um currículo de história mais objetivo e equilibrado se realmente quisermos... para ser mais justo e deveríamos começar por uma repartição equânime dos continentes com acontecimentos para a história humana (o que não incluiria a Antártida com o mesmo espaço, p.ex.).

Que houve domínio e subjugação de povos ninguém nega, agora simplificar relações entre grupos e nações, como se uma fosse o protagonista e outra o antagonista, uma vítima histórica e uma variante do grande satã é o que se depreende desta base nacional curricular comum que, felizmente, foi abortada. Se quisermos mesmo dar mais ênfase à história da América e África temos que mostrar como aqui indígenas e mestiços caçaram índios não aculturados, como do outro lado do Atlântico, africanos comercializaram seres humanos com europeus para suas lavouras no novo mundo etc. Isto também está em evidência ou só os ataques de colonizadores/conquistadores europeus contra povos belicamente menos aparelhados?

Não tem que se adotar uma perspectiva eurocêntrica, nem tampouco "afroamericocêntrica". A questão é que os proponentes da BNCC, simplesmente, abortaram qualquer contribuição europeia, qualquer uma. Eles recortaram de tal modo a selecionar apenas o que lhes convinha. Quando digo que lhes convinha é porque desta forma fica crível caricaturar a história mundial como uma peça do bem contra o mal, com a prevalência deste e de como nós, os bons, mas dominados temos que reagir. A forma de reação é óbvia, caberá a um estado regulador e provedor que deve tributar mais e mais o mercado a título de efetivar sua “compensação histórica”. Não há perspectiva em torno da mobilidade social pautada no esforço e mérito próprios, mas na socialização de recursos através de um mediador, o estado que, só não irá fazer isto através de um profundo desequilíbrio de poder para aqueles que são facilmente manipuláveis, ou seja, que querem se enganar.

Alguém deve estar se perguntando se as disciplinas não devem ser reestruturadas de tempos em tempos? Um exemplo recorrente é o que se fez em minha área de atuação, a Geografia em relação ao seu “eixo fundamental” definido pela categoria espaço, ao que já dediquei um artigo específico. Mas, espaço, território, região são categorias de análise tão essenciais a esta disciplina, como é o tempo para a História e nem por isto todos tem um consenso sobre o que de mais relevante ou determinante ocorreu através dele. Analogamente, nem sempre há consenso sobre a ordem de grandeza dos fenômenos físicos e sociais que devem ser espacializados na análise geográfica. O que existe de, tecnicamente objetivo na geografia é a grandeza escalar, o que é territorialmente maior ou menor e na história, a sucessão cronológica, o que veio antes ou depois. Se nossos professores e proponentes curriculares se ativessem a isto, boa parte do lixo doutrinário seria depurado.

Não se enganem, os proponentes desta malfadada BNCC querem nos fazer uma “venda casada”, pois não explicam em detalhes o que deve e porque deve ser suprimido e qual a justificativa filosófica, i.e., ideológica de sua hierarquia conceitual, pois se o fizessem, estariam se revelando.

Enfim, por ora, com o afastamento do PT no governo federal ganhamos uma e barramos a aplicação deste lixo ideológico que era a BNCC em todo o território nacional, mas seria um erro, enorme e imenso erro acharmos que eles desistiram ou não irão tentar novamente. Como é um conhecido clichê, o preço da liberdade é a eterna vigilância.

Anselmo Heidrich
22 set. 16

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