Este texto é claramente provocativo, reconheço, mas não é sem sentido. A ideia que vou defender aqui é polêmica, muitos de nossos amigos ou conhecidos podem estar envolvidos em atividades corruptas e se dizerem claramente contra a corrupção, sem perceber que fazem de um esquema maior e mais danoso à sociedade.
Anos atrás conheci um sujeito que trabalhava com prospecção de água em outro país e boa parte de seus clientes, fazendeiros, obtinha recursos para contratar seus serviços com crédito público, do principal banco estatal nacional.[1]
Em tese era algo justo e correto economicamente, o que poderia haver de errado em subsidiar produtores que trariam renda e emprego em regiões que eram pobres, em parte, devido a sua aridez. Só que o sujeito me confessou, na ingenuidade mesmo, como alguns desses clientes, fazendeiros, o recontratavam para sondar as mesmas propriedades ano após ano. Isso mesmo! Esses produtores, alegados produtores, o contratavam para prospectar o que já havia sido pesquisado, mapeado e encontrado nos anos anteriores. E ele sabia que estava errado, notem, embora não tivesse conhecimento legal sobre o assunto.
Vocês já devem estar sentindo nojo do cara, mas isso sempre ocorre quando não se tem proximidade com as pessoas que são acusadas e, por isso mesmo para se acusar e/ou defender alguém se deve ter um bom distanciamento da pessoa, isto é, não conhece-la como amiga ou inimiga. Qualquer operador de leis entenderia isso, mas nesses tempos de ampliação das notícias se faz necessário reforçar esta noção, básica. Obviamente que esses grandes corruptos que vemos constantemente nas manchetes de jornais e sites não são vistos como más pessoas pelo seu círculo de amigos e pessoas com quem mantêm relações.
Pense na ex-assessora de Bolsonaro que ocupava um cargo parlamentar e mantinha atividades como personal trainer no Rio de Janeiro, no mesmo período de trabalho ou outro ex-assessor de Lula que fazia pagamentos em dinheiro a grandes empreiteiras acusadas de reformar o sítio do ex-presidente. Tudo “ex”, não é? Mas relações de compadrio como estas devem estar ocorrendo a todo vapor nos dias de hoje e por quê? Por que são vantajosas para os envolvidos? Não é somente isto, pois elas são condenadas por muitas outras pessoas, o que por si só demoveria muitos de atuarem desta forma. O problema, como já falei, é que isto não é visto como imoral. Não se trata do que é ou não ilegal porque a grande maioria dos cidadãos, onde me incluo, não tem conhecimento dos meandros da lei, se trata do que se vê como moral ou não e nossas relações sociais, grandemente ancoradas, no conceito de ajuda mútua não prescindem do famoso toma-lá-dá-cá, esta é a verdade.
O sujeito do qual lhes falei não era um bandido, tipicamente falando, mas fez parte de uma relação que suga recursos nacionais, de impostos, para sustentar uma máfia difusa, daquelas que age como bactérias se multiplicando e infeccionando o organismo social. E quanto mais aprofundarmos seu estudo, mais veremos que a capilaridade de suas relações perpassa vastas extensões do país. Imagine um mobile de teto como arranjo de quarto… Agora, o nível superior sustenta outros dois que sustentam outros dois que sustentam outros e assim vai. Obviamente que a principal parcela dos recursos está lá em cima e nos fixamos nela quando tecemos nossas críticas, mas sua força consiste na aceitação dos níveis inferiores deste organograma oculto, pois diferentemente do mobile, ele não se sustenta com um gancho no teto, mas com bases sólidas fincadas no chão pelo nosso constante e diário modo de ver e se comportar.
A esta altura do campeonato, muitos de vocês devem estar enxergando nestas linhas uma justificativa para o crime, uma tosca tentativa de passar pano numa das maiores chagas nacionais. Não é não, mas estou indo além de querer focar só em figurões e mostrar a todos vocês como estes mafiosos se legitimam. Meu conhecido me dizia que estes fazendeiros tinham investimentos em propriedades no litoral, apartamentos que alugavam ou revendiam e como não eram produtores, de fato, mas meros especuladores, rêmoras de rent-seeking[2], acabavam por concentrar renda estabelecendo estas falcatruas. Agora, para as comunidades locais onde atuavam, eram padrinhos, conselheiros influenciando até em namoros e casamentos, cujas opiniões não eram impostas, mas demandadas pelos indivíduos que ignoravam completamente o conceito de cidadania como autonomia política. As pessoas delegam sua liberdade e responsabilidade em nome de uma hierarquia informal e aí está boa parte da disseminação da corrupção.
Acho necessário dizer isto quando vejo tantos apoiadores de Bolsonaro justificando que é muito menos do que o que fez o PT. Sim, isto não está em discussão, mas é assim que se começa. Quando o PT era pequeno, financeiramente falando, ouvi de muito esta explicação “ah, se os outros podem por que nós também não?” e, como vocês sabem, deu no que deu. O traço essencial é que o corrupto convicto da corrupção se esconde e mente, o corrupto ideológico justifica seu método para atingir um fim nobre e neste quesito, petistas e bolsonaristas só se diferenciam pelo grau do dano causado, pois são exatamente a mesma coisa.
Não se esqueçam, não se trata de defender corruptos de grande calibre, longe disso, povo, longe disso. Apenas lembre-se de que antes de apontar o dedo para bandidos-mor, nossos pequenos delitos diários são que os mantêm no poder. Reconheça isto para começar um ano novo com a casa em ordem depois do caráter em ordem.
Anselmo Heidrich
2 jan. 20
Imagem “A lemon shark with ramoras in the Bahamas” (fonte): https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lemonshark.jpg
[1] Qualquer um dos casos citados à título de ilustração neste texto não passa de mera coincidência ou invenção do autor.
[2] Rent-seeking consiste numa forma de obter renda com a manipulação do ambiente político e econômico, como fazem os lobbies de grandes companhias ou investidores ligados ao governo. As rêmoras são peixes com ventosas na cabeça que nadam fixadas em tubarões. A figura dá uma ideia do que são os que beneficiam de predadores vorazes que atacam a fauna local.
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