domingo, abril 03, 2016

Conservadorismo, Socialismo e Liberalismo, na opinião de Hayek


"Interrogo-me ainda, perplexo, sobre a razão pela qual os que de fato creem em liberdade neste país não só permitiram que a esquerda se apropriasse desse termo quase insubstituível, mas chegaram a colaborar nessa manobra, passando a usá-lo em sentido pejorativo. Isso é lamentável sobretudo porque daí resultou a tendência de muitos verdadeiros liberais a se autodenominarem conservadores. É sem dúvida verdade que, na luta contra os adeptos do estado todo-poderoso, o verdadeiro liberal deve às vezes fazer causa comum com os conservadores. Em certas circunstâncias, como na Inglaterra de hoje, ser-lhe-ia difícil encontrar outro meio de trabalhar efetivamente pelos seus ideais. Mas o verdadeiro liberalismo distingue-se do conservantismo e é perigoso confundi-los. Embora elemento necessário em toda sociedade estável, o conservantismo não constitui, contudo, um programa social; em suas tendências paternalistas,nacionalistas, de adoração ao poder, ele com frequência se revela mais próximo do socialismo que do verdadeiro liberalismo; e, com suas propensões tradicionalistas, anti-intelectuais e frequentemente místicas, ele nunca, a não ser em curtos períodos de desilusão, desperta simpatia nos jovens e em todos os demais que julgam desejáveis algumas mudanças para que este mundo se torne melhor. Por sua própria natureza, um movimento conservador tende a defender os privilégios já instituídos e a apoiar-se no poder governamental para protegê-los. A essência da posição liberal, pelo contrário, está na negação de todo privilégio, se este é entendido em seu sentido próprio e original, de direitos que o estado concede e garante a alguns, e que não são acessíveis em iguais condições a outros."

O Caminho da Servidão, F.A. Hayek


(...) 
É especialmente na cidade que a esfera de escolhas livres tende a desaparecer. Na escola, no local de trabalho, no vaivém do dia a dia, mesmo no arranjo e no suprimento do próprio lar, muitas das atividades em geral facultadas aos homens são quer proibidas, quer impostas. Escritórios especiais, denominados Agências para Orientação dos Cidadãos, são criados para guiar o povo desnorteado através do matagal de regras e para indicar aos obstinados as raras clareiras em que um indivíduo ainda pode fazer escolhas... [o rapaz da cidade] está condicionado a não levantar um dedo sem antes se reportar mentalmente a algum regulamento. O programa de um jovem comum da cidade para um dia comum de trabalho mostra que ele passa grandes períodos das horas em que está acordado movimentando se de forma predeterminada por diretrizes de cuja elaboração não participou, cuja finalidade precisa raramente entender, e cujo acerto não pode julgar... A inferência de que um jovem da cidade necessita de mais disciplina e de um controle mais estrito é excessivamente apressada. Seria mais certo dizer que ele já sofre de uma dose exagerada de controles... Olhando para seus pais e irmãos ou irmãs mais velhos, descobre que também eles estão presos a regulamentos. Ele os vê tão aclimatados a essa situação, que raramente planejam e realizam por conta própria qualquer excursão ou iniciativa social. Assim, não vislumbra um período futuro em que um vigoroso espírito de responsabilidade lhe possa ser útil ou ter utilidade para outros... [Os jovens] são obrigados a engolir tantos controles externos sem sentido a seus olhos que procuram a fuga e a compensação numa ausência de disciplina tão completa quanto possível.
Haverá excesso de pessimismo em recear que uma geração criada sob tais condições não rompa os grilhões aos quais se habituou?

Creio, pelo contrário, que essa descrição antes confirma plenamente o que de Tocqueville previu sobre um “novo tipo de servidão”, que apareceria quando, depois de ter subjugado sucessivamente cada membro da sociedade, modelando-lhe o espírito segundo sua vontade, o estado estende então seus braços sobre toda a comunidade. Cobre o corpo social com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes, rede que as mentes mais originais e os caracteres mais fortes não conseguem penetrar para elevar-se acima da multidão. A vontade do homem não é destruída, mas amolecida, dobrada e guiada; ele raramente é obrigado a agir, mas é com frequência proibido de agir. Tal poder não destrói a existência, mas a torna impossível; não tiraniza, mas comprime, enerva, sufoca e entorpece um povo, até que cada nação seja reduzida a nada mais que um rebanho de tímidos animais industriais, cujo pastor é o governo. Sempre pensei que uma servidão metódica, pacata e suave, como a que acabo de descrever, pode ser combinada, com mais facilidade do que em geral se pensa, com alguma forma aparente de liberdade, e que poderia mesmo estabelecer-se sob as asas da soberania popular.
(...)
“O mais grave dessa evolução é o crescimento da coerção administrativa arbitrária e a progressiva destruição do estado de Direito, fundamento da liberdade britânica, e isso pelas exatas razões aqui analisadas no capítulo VI. Evidentemente, esse processo se iniciara muito antes da ascensão do último governo trabalhista, e havia sido acentuado pela guerra. Mas as experiências de planejamento econômico sob o governo trabalhista levaram essa evolução a tal ponto que se tornou hoje duvidoso se se pode dizer que o estado de Direito ainda prevalece na Inglaterra. O “novo despotismo” sobre o qual um ministro da Suprema Corte de Justiça advertiu a Inglaterra há 25 anos é, como The Economist observou em data recente, não mais um simples perigo, mas um fato concreto. Trata-se de um despotismo exercido por uma burocracia conscienciosa e honesta, em prol daquilo que ela sinceramente acredita ser o bem do país. Mas, apesar disso, o governo é arbitrário, e na prática não está sujeito a um efetivo controle parlamentar. A sua máquina poderia ser eficaz para outros fins, que não os de ordem beneficente para os quais é agora usada. Duvido que tenha havido muito exagero quando, há pouco tempo, um eminente jurista britânico, em cuidadosa análise dessas tendências, chegou à conclusão de que, “na Inglaterra de hoje, vivemos à beira da ditadura. A transição seria fácil e rápida, podendo ser realizada em plena legalidade. Se considerarmos os poderes incomensuráveis de que goza o atual governo, bem como a ausência de qualquer fiscalização eficaz como seria uma constituição escrita ou uma segunda câmara realmente ativa, veremos que já foram dados tantos passos em direção à ditadura que os que ainda faltam são relativamente pequenos”. (...)
Parece agora improvável que, mesmo se outro governo trabalhista vier a subir ao poder na Inglaterra, ele retome as experiências de nacionalização e planejamento em larga escala. Mas nesse país, como em todo o mundo, a derrota sofrida pelo violento ataque do socialismo sistemático apenas tem dado, aos que desejam ardentemente a preservação da liberdade, uma pausa para respirar, durante a qual devemos reexaminar nossas ambições e desfazer-nos de todos os elementos da herança socialista que representam um perigo para a sociedade livre. Sem semelhante revisão de nossos objetivos sociais, é provável que continuemos a ser arrastados na mesma direção para a qual um socialismo completo apenas nos teria conduzido um pouco mais rapidamente.”

Isto que Hayek se refere a uma "burocracia conscienciosa e honesta"... Agora imagine quando ela, deliberadamente, não o é.


A primeira impressão lendo estes prefácios é de quão humilde era a proposta de Hayek ao fazer este livro. Em determinado momento ele compara seus escritos com espaçamento de duas décadas e o que achava que tinha sido mal compreendido, pelas reações negativas nos EUA, p.ex., tinha sido revertido ao longo do tempo, como atestaram as vendas do seu trabalho. Inicialmente, Hayek se lamenta por ter sido mais conhecido por este trabalho, de cunho não técnico, não especificamente econômico, mas depois ele vê que o trabalho de propósito fundamentalmente político teve um impacto importante. Isto nos causa uma grande empatia por percebermos a trajetória de um homem que obteve sucesso em expressar suas convicções e influenciar uma legião de outros que disseminaram suas preocupações e paradigmas filosóficos para a sociedade.
Duas observações são contundentes, a de que os jovens são muito influenciáveis e como duas gerações após, no caso do Reino Unido que ele toma como exemplo e referência básica, após duas gerações sob um sistema com muitas regulamentações e planejamento estatal já não sabem mais como proceder autonomamente achando natural seguir regras porque, ora! Sempre foi assim!

Mas, em determinado momento, Hayek diz algo que me parece um verdadeiro achado, especialmente para os tempos atuais que vivemos no Brasil porque está claro hoje que lidamos com bandidos da pior espécie, mas será que esta é a principal razão de nossos males? Vejam... O planejamento pode até ser bem executado, mas ele não garante uma economia dinâmica, nem criativa, mesmo que não haja desvios de recursos ou de finalidade, ele pode até ser praticado por “uma burocracia conscienciosa e honesta”, o problema não é sua intenção, seja ruim ou interesseira, basta que haja um controle quase absoluto que a economia, no longo prazo irá perder fôlego. Este é o recado de Hayek, como este tipo de organização, mesmo quando não mira em sistemas totalitários, como o nazismo ou o comunismo pode gerar males que acabam com a economia minando a moral da sociedade.
Se, a longo prazo, somos os criadores do nosso destino, de imediato somos escravos das ideias que criamos.” Está claro e cristalino que Hayek tinha um temor pelo nazismo, uma vez que ele viveu este período com intensidade e, como ele mesmo dissera, sentiu não ter dito o mesmo, com a mesma preocupação sobre o comunismo soviético. Claro que havia a desculpa de que à época, o país era um aliado contra a Alemanha nazista, mas que no longo prazo se revelaria extremamente pernicioso. E arrisco dizer que pior, pois o nazismo era mais explícito em sua insanidade, já o comunismo revestido de um manto de racionalidade nos engana e até os dias atuais, em que pese todo o número de assassinatos cometido, ainda angaria o apoio de jovens incautos.
A tese principal do livro toca em um ponto ainda hoje pouco compreendido, de que os principais opositores do nazismo também não entenderam: o nazismo não foi uma reação ao socialismo, mas fruto das mesmas ideias básicas que levaram à constituição de ambos sistemas. E mesmo que se oponham moralmente ao nazismo, os programas e passos em direção a uma economia totalmente planejada e uma sociedade socialista levará aos mesmos vícios e problemas alcançados pelo nazismo. A diferença dos caminhos não significa identidade na lógica de organização.
Hayek afirma que não basta sermos fiéis aos nossos ideais e à busca pela liberdade para combater o totalitarismo tanto o nazismo, quanto o socialismo em crescimento à época porque, fundamentalmente, há uma propaganda intensa a que somos submetidos. O que chama atenção é que a gênese do totalitarismo só é melhor compreendida se olharmos para algumas de nossas mais profundas crenças:
Chega-se a ter a impressão de que não desejamos compreender a sequência dos fatos que produziram o totalitarismo porque tal compreensão poderia destruir algumas das mais caras ilusões a que nos apegamos” (28). E de modo perspicaz, Hayek chama atenção também para o erro que reside em um simplismo de avaliação, de entender o nazismo como uma falha de caráter do povo alemão esquecendo-se quanto os ingleses devem ao conhecimento alemão já produzido e como, dentre os próprios britânicos surgiram bases de pensamento nacionalista que primaram pelo preconceito que ajudou a erigir o próprio nazismo “[i]sto é ainda mais perigoso porque o argumento de que apenas a maldade peculiar aos alemães produziu o sistema nazista provavelmente se tornará uma justificativa para compelir-nos a aceitar as próprias instituições que engendraram essa maldade” (29). Assim como avaliou a burocracia, que bem pode agir corretamente, não é por falha de caráter, mas pelo modo como a estrutura do estado foi organizada que pode se chegar aos sistemas que solapam completamente a liberdade humana.
Agora vou fazer uma provocação:
Muitos aceitam a opinião enganosa e superficial de que o nacional-socialismo é meramente uma reação fomentada por aqueles cujos interesses ou privilégios estavam ameaçados pelo avanço do socialismo. Esse ponto de vista foi naturalmente defendido por todos os que, embora em certa ocasião tivessem participado do movimento ideológico que levou ao nacional-socialismo, detiveram-se a certa altura desse processo e, devido ao conflito com os nazistas que semelhante atitude provocou, viram se forçados a abandonar o seu país. Mas o fato de que essas pessoas eram numericamente a única oposição ponderável aos nazistas não significa senão que, em sentido amplo, quase todos os alemães se haviam convertido em socialistas e que o liberalismo, no velho sentido, fora alijado pelo socialismo. Conforme esperamos demonstrar, o conflito existente na Alemanha entre a “direita” nacional-socialista e a “esquerda” é o tipo de conflito que sempre se verifica entre facções socialistas rivais. Se esta interpretação for correta, significará, todavia, que muitos daqueles refugiados socialistas, ao aferrarem-se às suas ideias, estão atualmente, embora com a melhor boa vontade do mundo, cooperando para induzir seu país adotivo a seguir o caminho tomado pela Alemanha” (30).
Querem melhor comparação com o Brasil atual, para o qual nossa “melhor opção” não é nada mais, nada menos do que um combativo e beligerante político com uma clara retórica saudosista da ditadura militar? Vejam, ninguém nega aqui, a necessidade e valor funcional da ordem militar, mas quando ela se torna parte referencial, um paradigma quase da cultura política popular é porque a sociedade em questão já não tem apreço por si própria e pelo significado de ser civil. Por mais críticos que sejamos ao nosso Código Civil temos que divulgá-lo, traduzi-lo, popularizá-lo para dar um sentido de ordem às massas, de direitos e deveres para que não sejam seduzidos por salvadores da pátria, populistas de esquerda ou de direita e também por homens de botões dourados e coturnos largos que venham pisar nas gargantas de quem ousar emitir um sopro de discordância. Como podemos observar nos comentários de Hayek, o socialismo mais que o prussianismo na Alemanha é que levou o país ao nazismo:
“Sei que muitos de meus amigos ingleses se sentiram algumas vezes chocados pelas ideias semifascistas ocasionalmente expressas por refugiados alemães de cujas genuínas convicções socialistas não se podia duvidar. Mas enquanto esses observadores ingleses atribuíam tais ideias ao fato de que os outros eram alemães, a verdadeira explicação é que eles eram socialistas cuja experiência os havia levado muitos estágios além dos já atingidos pelos socialistas na Inglaterra e nos Estados Unidos. É sem dúvida verdade que os socialistas alemães encontraram grande apoio, no seu país, em certos aspectos da tradição prussiana; e o parentesco entre prussianismo e socialismo, do qual ambos os lados se glorificam na Alemanha, fortalece nosso principal argumento. Mas seria um erro acreditar que foi o elemento especificamente alemão, e não o elemento socialista, que produziu o totalitarismo. Era, com efeito, a preponderância das ideias socialistas, e não o prussianismo, o que a Alemanha tinha em comum com a Itália e a Rússia – e foi das massas e não das classes imbuídas da tradição prussiana, e auxiliado pelas massas, que surgiu o nacional-socialismo” (30).
         Mas a influência da organização militar alemã – o prussianismo – também teve seu peso na constituição do que viria a ser a sociedade alemã naquela conjuntura histórica:
É inegável que de fato existe certo parentesco entre o socialismo e a organização do estado prussiano, feita conscientemente de cima para baixo como em nenhum outro pais, o que aliás já era claramente reconhecido pelos antigos socialistas franceses. Muito antes de ter surgido o ideal de dirigir todo o estado dentro dos mesmos princípios de direção de uma fábrica, ideal que viria inspirar o socialismo do século XIX, o poeta prussiano Sovalis já havia deplorado que ‘nenhum outro estado jamais foi administrado de modo tão semelhante a uma fábrica como a Prússia desde a morte de Frederico Guilherme’ (cf. Novalis Friedrich von Hardenberg. Glauben und Liebe, oder der König und die Königin, 1798)” (nota 19, p. 31).
Atenção, muita atenção para o que diz Hayek, o apoio à constituição do socialismo não veio de uma classe, mas da massa. Portanto, muito mais do que o marxismo, nos devemos preocupar é com o populismo que trata a todos como um coletivo indistinto que deve ser apadrinhado por um estado protetor. E o que é o estado-providência se não isto?

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Fas est et ab hoste doceri – Ovídio

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