"Interrogo-me
ainda, perplexo, sobre a razão pela qual os que de fato creem em liberdade
neste país não só permitiram que a esquerda se apropriasse desse termo quase
insubstituível, mas chegaram a colaborar nessa manobra, passando a usá-lo em
sentido pejorativo. Isso é lamentável sobretudo porque daí resultou a tendência
de muitos verdadeiros liberais a se autodenominarem conservadores. É sem dúvida
verdade que, na luta contra os adeptos do estado todo-poderoso, o verdadeiro
liberal deve às vezes fazer causa comum com os conservadores. Em certas circunstâncias,
como na Inglaterra de hoje, ser-lhe-ia difícil encontrar outro meio de
trabalhar efetivamente pelos seus ideais. Mas o verdadeiro liberalismo
distingue-se do conservantismo e é perigoso confundi-los. Embora elemento
necessário em toda sociedade estável, o conservantismo não constitui, contudo,
um programa social; em suas tendências paternalistas,nacionalistas, de adoração
ao poder, ele com frequência se revela mais próximo do socialismo que do
verdadeiro liberalismo; e, com suas propensões tradicionalistas,
anti-intelectuais e frequentemente místicas, ele nunca, a não ser em curtos
períodos de desilusão, desperta simpatia nos jovens e em todos os demais que
julgam desejáveis algumas mudanças para que este mundo se torne melhor. Por sua
própria natureza, um movimento conservador tende a defender os privilégios já
instituídos e a apoiar-se no poder governamental para protegê-los. A essência
da posição liberal, pelo contrário, está na negação de todo privilégio, se este
é entendido em seu sentido próprio e original, de direitos que o estado concede
e garante a alguns, e que não são acessíveis em iguais condições a outros."
O Caminho da Servidão, F.A. Hayek
(...)
“É especialmente
na cidade que a esfera de escolhas livres tende a desaparecer. Na escola, no
local de trabalho, no vaivém do dia a dia, mesmo no arranjo e no suprimento do
próprio lar, muitas das atividades em geral facultadas aos homens são quer
proibidas, quer impostas. Escritórios especiais, denominados Agências para
Orientação dos Cidadãos, são criados para guiar o povo desnorteado através do
matagal de regras e para indicar aos obstinados as raras clareiras em que um
indivíduo ainda pode fazer escolhas... [o rapaz da cidade] está condicionado a
não levantar um dedo sem antes se reportar mentalmente a algum regulamento. O
programa de um jovem comum da cidade para um dia comum de trabalho mostra que ele
passa grandes períodos das horas em que está acordado movimentando se de forma
predeterminada por diretrizes de cuja elaboração não participou, cuja
finalidade precisa raramente entender, e cujo acerto não pode julgar... A
inferência de que um jovem da cidade necessita de mais disciplina e de um
controle mais estrito é excessivamente apressada. Seria mais certo dizer que
ele já sofre de uma dose exagerada de controles... Olhando para seus pais e
irmãos ou irmãs mais velhos, descobre que também eles estão presos a
regulamentos. Ele os vê tão aclimatados a essa situação, que raramente planejam
e realizam por conta própria qualquer excursão ou iniciativa social. Assim, não
vislumbra um período futuro em que um vigoroso espírito de responsabilidade lhe
possa ser útil ou ter utilidade para outros... [Os jovens] são obrigados a
engolir tantos controles externos sem sentido a seus olhos que procuram a fuga
e a compensação numa ausência de disciplina tão completa quanto possível.
Haverá excesso de pessimismo em recear que uma geração criada sob tais
condições não rompa os grilhões aos quais se habituou?
Creio, pelo contrário, que essa descrição antes confirma
plenamente o que de Tocqueville previu sobre um “novo tipo de servidão”, que
apareceria quando, depois de ter subjugado sucessivamente cada membro da
sociedade, modelando-lhe o espírito segundo sua vontade, o estado estende então
seus braços sobre toda a comunidade. Cobre o corpo social com uma rede de pequenas
regras complicadas, minuciosas e uniformes, rede que as mentes mais originais e
os caracteres mais fortes não conseguem penetrar para elevar-se acima da multidão.
A vontade do homem não é destruída, mas amolecida, dobrada e guiada; ele
raramente é obrigado a agir, mas é com frequência proibido de agir. Tal poder
não destrói a existência, mas a torna impossível; não tiraniza, mas comprime,
enerva, sufoca e entorpece um povo, até que cada nação seja reduzida a nada
mais que um rebanho de tímidos animais industriais, cujo pastor é o governo.
Sempre pensei que uma servidão metódica, pacata e suave, como a que acabo de
descrever, pode ser combinada, com mais facilidade do que em geral se pensa,
com alguma forma aparente de liberdade, e que poderia mesmo estabelecer-se sob
as asas da soberania popular.”
(...)
“O mais grave dessa evolução é o crescimento da coerção administrativa
arbitrária e a progressiva destruição do estado de Direito, fundamento da
liberdade britânica, e isso pelas exatas razões aqui analisadas no capítulo VI.
Evidentemente, esse processo se iniciara muito antes da ascensão do último
governo trabalhista, e havia sido acentuado pela guerra. Mas as experiências de
planejamento econômico sob o governo trabalhista levaram essa evolução a tal ponto
que se tornou hoje duvidoso se se pode dizer que o estado de Direito ainda prevalece
na Inglaterra. O “novo despotismo” sobre o qual um ministro da Suprema Corte de
Justiça advertiu a Inglaterra há 25 anos é, como The Economist observou em data
recente, não mais um simples perigo, mas um fato concreto. Trata-se de um
despotismo exercido por uma burocracia conscienciosa e honesta, em prol daquilo
que ela sinceramente acredita ser o bem do país. Mas, apesar disso, o governo é
arbitrário, e na prática não está sujeito a um efetivo controle parlamentar. A
sua máquina poderia ser eficaz para outros fins, que não os de ordem
beneficente para os quais é agora usada. Duvido que tenha havido muito exagero
quando, há pouco tempo, um eminente jurista britânico, em cuidadosa análise
dessas tendências, chegou à conclusão de que, “na Inglaterra de hoje, vivemos à
beira da ditadura. A transição seria fácil e rápida, podendo ser realizada em
plena legalidade. Se considerarmos os poderes incomensuráveis de que goza o
atual governo, bem como a ausência de qualquer fiscalização eficaz como seria
uma constituição escrita ou uma segunda câmara realmente ativa, veremos que já
foram dados tantos passos em direção à ditadura que os que ainda faltam são
relativamente pequenos”. (...)
Parece agora improvável
que, mesmo se outro governo trabalhista vier a subir ao poder na Inglaterra,
ele retome as experiências de nacionalização e planejamento em larga escala.
Mas nesse país, como em todo o mundo, a derrota sofrida pelo violento ataque do
socialismo sistemático apenas tem dado, aos que desejam ardentemente a
preservação da liberdade, uma pausa para respirar, durante a qual devemos
reexaminar nossas ambições e desfazer-nos de todos os elementos da herança
socialista que representam um perigo para a sociedade livre. Sem semelhante
revisão de nossos objetivos sociais, é provável que continuemos a ser
arrastados na mesma direção para a qual um socialismo completo apenas nos teria
conduzido um pouco mais rapidamente.”
Isto que Hayek se refere a uma "burocracia conscienciosa e honesta"... Agora imagine quando ela, deliberadamente, não o é.
A primeira impressão lendo estes prefácios é
de quão humilde era a proposta de Hayek ao fazer este livro. Em determinado
momento ele compara seus escritos com espaçamento de duas décadas e o que
achava que tinha sido mal compreendido, pelas reações negativas nos EUA, p.ex.,
tinha sido revertido ao longo do tempo, como atestaram as vendas do seu
trabalho. Inicialmente, Hayek se lamenta por ter sido mais conhecido por este
trabalho, de cunho não técnico, não especificamente econômico, mas depois ele vê
que o trabalho de propósito fundamentalmente político teve um impacto
importante. Isto nos causa uma grande empatia por percebermos a trajetória de
um homem que obteve sucesso em expressar suas convicções e influenciar uma legião
de outros que disseminaram suas preocupações e paradigmas filosóficos para a
sociedade.
Duas observações são contundentes, a de que
os jovens são muito influenciáveis e como duas gerações após, no caso do Reino
Unido que ele toma como exemplo e referência básica, após duas gerações sob um
sistema com muitas regulamentações e planejamento estatal já não sabem mais
como proceder autonomamente achando natural seguir regras porque, ora! Sempre foi
assim!
Mas, em determinado momento, Hayek diz algo
que me parece um verdadeiro achado, especialmente para os tempos atuais que
vivemos no Brasil porque está claro hoje que lidamos com bandidos da pior espécie,
mas será que esta é a principal razão de nossos males? Vejam... O planejamento
pode até ser bem executado, mas ele não garante uma economia dinâmica, nem
criativa, mesmo que não haja desvios de recursos ou de finalidade, ele pode até
ser praticado por “uma burocracia conscienciosa e honesta”, o problema não é
sua intenção, seja ruim ou interesseira, basta que haja um controle quase
absoluto que a economia, no longo prazo irá perder fôlego. Este é o recado de
Hayek, como este tipo de organização, mesmo quando não mira em sistemas totalitários,
como o nazismo ou o comunismo pode gerar males que acabam com a economia
minando a moral da sociedade.
“Se, a longo prazo, somos os
criadores do nosso destino, de imediato somos escravos das ideias que criamos.”
Está claro e cristalino que Hayek tinha um temor pelo nazismo, uma vez que ele
viveu este período com intensidade e, como ele mesmo dissera, sentiu não ter
dito o mesmo, com a mesma preocupação sobre o comunismo soviético. Claro que
havia a desculpa de que à época, o país era um aliado contra a Alemanha
nazista, mas que no longo prazo se revelaria extremamente pernicioso. E arrisco
dizer que pior, pois o nazismo era mais explícito em sua insanidade, já o
comunismo revestido de um manto de racionalidade nos engana e até os dias
atuais, em que pese todo o número de assassinatos cometido, ainda angaria o
apoio de jovens incautos.
A tese principal do livro toca em um ponto ainda hoje
pouco compreendido, de que os principais opositores do nazismo também não entenderam:
o nazismo não foi uma reação ao socialismo, mas fruto das mesmas ideias básicas
que levaram à constituição de ambos sistemas. E mesmo que se oponham moralmente
ao nazismo, os programas e passos em direção a uma economia totalmente
planejada e uma sociedade socialista levará aos mesmos vícios e problemas
alcançados pelo nazismo. A diferença dos caminhos não significa identidade na lógica
de organização.
Hayek afirma que não basta sermos fiéis aos
nossos ideais e à busca pela liberdade para combater o totalitarismo tanto o
nazismo, quanto o socialismo em crescimento à época porque, fundamentalmente, há
uma propaganda intensa a que somos submetidos. O que chama atenção é que a gênese
do totalitarismo só é melhor compreendida se olharmos para algumas de nossas
mais profundas crenças:
“Chega-se a ter a impressão de que não desejamos
compreender a sequência dos fatos que produziram o totalitarismo porque tal
compreensão poderia destruir algumas das mais caras ilusões a que nos apegamos” (28). E de modo perspicaz, Hayek chama atenção também para
o erro que reside em um simplismo de avaliação, de entender o nazismo como uma
falha de caráter do povo alemão esquecendo-se quanto os ingleses devem ao
conhecimento alemão já produzido e como, dentre os próprios britânicos surgiram
bases de pensamento nacionalista que primaram pelo preconceito que ajudou a
erigir o próprio nazismo “[i]sto é ainda mais perigoso porque o
argumento de que apenas a maldade peculiar aos alemães produziu o sistema
nazista provavelmente se tornará uma justificativa para compelir-nos a aceitar
as próprias instituições que engendraram essa maldade”
(29). Assim como avaliou a burocracia, que bem pode agir corretamente, não é
por falha de caráter, mas pelo modo como a estrutura do estado foi organizada
que pode se chegar aos sistemas que solapam completamente a liberdade humana.
Agora vou fazer uma provocação:
“Muitos aceitam a opinião enganosa e superficial de que o
nacional-socialismo é meramente uma reação fomentada por aqueles cujos interesses
ou privilégios estavam ameaçados pelo avanço do socialismo. Esse ponto de vista
foi naturalmente defendido por todos os que, embora em certa ocasião tivessem
participado do movimento ideológico que levou ao nacional-socialismo,
detiveram-se a certa altura desse processo e, devido ao conflito com os
nazistas que semelhante atitude provocou, viram se forçados a abandonar o seu
país. Mas o fato de que essas pessoas eram numericamente a única oposição
ponderável aos nazistas não significa senão que, em sentido amplo, quase todos
os alemães se haviam convertido em socialistas e que o liberalismo, no velho
sentido, fora alijado pelo socialismo. Conforme esperamos demonstrar, o
conflito existente na Alemanha entre a “direita” nacional-socialista e a “esquerda”
é o tipo de conflito que sempre se verifica entre facções socialistas rivais.
Se esta interpretação for correta, significará, todavia, que muitos daqueles refugiados
socialistas, ao aferrarem-se às suas ideias, estão atualmente, embora com a
melhor boa vontade do mundo, cooperando para induzir seu país adotivo a seguir
o caminho tomado pela Alemanha” (30).
Querem melhor comparação com o Brasil atual, para o qual
nossa “melhor opção” não é nada mais, nada menos do que um combativo e
beligerante político com uma clara retórica saudosista da ditadura militar? Vejam,
ninguém nega aqui, a necessidade e valor funcional da ordem militar, mas quando
ela se torna parte referencial, um paradigma quase da cultura política popular
é porque a sociedade em questão já não tem apreço por si própria e pelo
significado de ser civil. Por mais críticos que sejamos ao nosso Código Civil
temos que divulgá-lo, traduzi-lo, popularizá-lo para dar um sentido de ordem às
massas, de direitos e deveres para que não sejam seduzidos por salvadores da pátria,
populistas de esquerda ou de direita e também por homens de botões dourados e
coturnos largos que venham pisar nas gargantas de quem ousar emitir um sopro de
discordância. Como podemos observar nos comentários de Hayek, o socialismo mais
que o prussianismo na Alemanha é que levou o país ao nazismo:
“Sei que muitos de meus amigos ingleses se sentiram algumas
vezes chocados pelas ideias semifascistas ocasionalmente expressas por refugiados
alemães de cujas genuínas convicções socialistas não se podia duvidar. Mas
enquanto esses observadores ingleses atribuíam tais ideias ao fato de que os
outros eram alemães, a verdadeira explicação é que eles eram socialistas cuja
experiência os havia levado muitos estágios além dos já atingidos pelos
socialistas na Inglaterra e nos Estados Unidos. É sem dúvida verdade que os
socialistas alemães encontraram grande apoio, no seu país, em certos aspectos
da tradição prussiana; e o parentesco entre prussianismo e socialismo, do qual
ambos os lados se glorificam na Alemanha, fortalece nosso principal argumento.
Mas seria um erro acreditar que foi o elemento especificamente alemão, e não o
elemento socialista, que produziu o totalitarismo. Era, com efeito, a preponderância
das ideias socialistas, e não o prussianismo, o que a Alemanha tinha em comum
com a Itália e a Rússia – e foi das massas e não das classes imbuídas da tradição
prussiana, e auxiliado pelas massas, que surgiu o nacional-socialismo”
(30).
Mas a influência da organização militar
alemã – o prussianismo – também teve seu peso na constituição do que viria a
ser a sociedade alemã naquela conjuntura histórica:
“É inegável que de fato existe certo parentesco entre o
socialismo e a organização do estado prussiano, feita conscientemente de cima
para baixo como em nenhum outro pais, o que aliás já era claramente reconhecido
pelos antigos socialistas franceses. Muito antes de ter surgido o ideal de dirigir
todo o estado dentro dos mesmos princípios de direção de uma fábrica, ideal que
viria inspirar o socialismo do século XIX, o poeta prussiano Sovalis já havia
deplorado que ‘nenhum outro estado jamais foi administrado de modo tão
semelhante a uma fábrica como a Prússia desde a morte de Frederico Guilherme’
(cf. Novalis Friedrich von Hardenberg. Glauben und Liebe, oder der König und
die Königin, 1798)” (nota 19, p. 31).
Atenção, muita atenção para o que diz Hayek,
o apoio à constituição do socialismo não veio de uma classe, mas da massa. Portanto,
muito mais do que o marxismo, nos devemos preocupar é com o populismo que trata
a todos como um coletivo indistinto que deve ser apadrinhado por um estado
protetor. E o que é o estado-providência se não isto?
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Se concorda, compartilhe.
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