Assim,
amiguinhos:
1. A Somália não serve de exemplo de
anarquismo?
2. Os partidos políticos são guiados por
ideologias bem definidas?
3. Ideologia é algo mais
concreto/efetivo do que o vago conceito de fenômeno social?
Para estas e outras dúvidas aconselho uma dose de discussão metodológica
em ciências sociais.
Vamos lá, em 1º lugar, a realidade não é preto no branco, nunca foi. Há
vários tons de cinza e são bem mais que 50... Até onde sei, o Republicano é
anterior – Great Old Party, GOP – e o
Democrata partiu dos estados sulistas. O que ocorreu pós Guerra de Secessão é
articulação deste último para obter fundos da federação, já que o norte yankee
era mais rico. A partir dos anos 60, com a contracultura, a New Left se
estabeleceu dentro do Democrata, mas isto não caracteriza uma ideologia
consolidada (como se vê em partidos comunistas, nazistas, liberais, socialistas
etc.), são só articulações de interesses. Há muito tempo venho cantando esta
bola que isto, na verdade, é que permite uma “cola social” aos EUA eliminando
os extremismos.[1] Analogamente, qual seria a
ideologia do PMDB? Não existe. Assim como o PSDB, por mais social-democrata que
se afirme, qual a correspondência disto com o que vemos na Europa sob o mesmo
rótulo? Nenhuma. E o PT seria um partido trabalhista? Dá um tempo! Não existe
isto, exceto em legendas menores, que são menores justamente porque são
puristas. Mesmo dentro do quadro conservador do Republicano não há esse
purismo, uma vez que eles tem uma ala gay, uma vez que o pai de George Bush,
quando governador do Texas propôs um controle de armas (gun control), o que é um verdadeiro tabu para conservadores.
Portanto, falar em fenômeno social é
muito mais acertado porque denota espírito analítico ao separarmos o nome, a ideia
(ou ideologia) do que nós realmente observamos.
E o anarquismo? Do campo das ideias é uma beleza, é a mais perfeita das
ideologias que, aliás, eu conheço desde meus 13 anos quando tive em mãos Os Grandes Escritos Anarquistas de George Woodcock, professor de história
canadense. Mas, o que deu certo desta ideologia do século XIX? Onde foi
aplicada? Em lugar nenhum. Seja as ideias de Pierre-Joseph Proudhon, de Michael
Bakunin, de Enrico Malatesta ou Piotr Kroptkin, nada foi aplicado que durasse.
Só noites efêmeras numa Comuna de Paris sitiada. E se dar ao luxo de acreditar
nesta piada é negar a etologia, é negar a ciência. Não gosta do estado?
Controle-o. Não é porque eu não gosto de ficar gripado que vou me achar tolo o
suficiente para eliminar o vírus da face da Terra... Mesmo experiências
autonomistas, como na comunidade de Christiana (dentro da cidade de Kopenhagen)
existe uma série de regulamentos, como não usar drogas pesadas e portar armas
de fogo.[2]
Ora, assim até o Colorado e o Texas são mais livres que os novos anarquistas do
século XXI! Portanto, se eu utilizasse a definição filosófica do século XIX, eu
seria um materialista, pois o que me
importa seria o campo da realidade, a sociedade e não, o campo das ideias, que
me definiria como um idealista.[3] Prefiro, no
entanto, outro par para explicar esta confusão... Em A Miséria do Historicismo, Karl
R. Popper explica porque um grande elemento de atraso nas ciências sociais
(no marxismo, em particular) é a busca por essências, algo como a estrutura
molecular por detrás (ou dentro) dos fenômenos sociológicos. Marx, p.ex.,
chegava a mencionar esta analogia e toda sua “economia” é baseada na premissa
de que existe algo oculto nas relações sociais e que as determina sendo que o
que vemos está no mero “reino das aparências”. Isto é tão gritante na obra dele
que não há a mínima preocupação em explicar os preços no mercado, pois isto
seria meramente aparente e, de fato, contradiria totalmente sua visão econômica,
pois implicaria em admitir e, pior, entender a lógica da economia de mercado.
Enfim, a este essencialismo, eu
oponho o nominalismo, que é algo bem
mais simples: nas ciências (sociais ou não), nós lidamos todo o tempo com nomes
e esses remetem à conceitos, só que não é porque algo tem o mesmo nome que
apresenta, necessariamente, o mesmo conceito. Daí entender como impossível um
ruralista no Partido Verde, somente na conjuntura brasileira, pois em outras,
podemos ter ruralistas orgânicos ou mesmo convencionais que procurem mitigar
e/ou minimizar os impactos ambientais de sua atividade econômica. No caso que
trato, o conceito de anarquismo é literal, sem ordem, mas não sem poder, pois
poder é a moeda de troca de toda vida social. Não há um anarquismo, como o
exemplo clássico que nos vem a mente quando lemos este nome (os casos do século
XIX), mas vários... Os autonomistas do século XX, os anarco-capitalistas que
vigoram até os dias atuais (assista os vídeos do youtuber Daniel Fraga que vai
entender o que estou dizendo), os ambientalistas que propõem modelos de
“economia solidária”, os próprios aborígines e indígenas que viviam em
sociedades sem estado etc. Mas veja, nenhum deles elimina o poder. Poder é algo
animal, biológico até. Negar este elemento dentro de um conceito de algo que
não existiu e nem nunca vai existir é tão absurdo quanto um ideólogo de gênero
tentando negar a biologia. E este é o conceito, sem ordem constituída de modo
centralizado, que utilizo para caracterizar sociedades anárquicas,
dentre as quais a Somália é um exemplo perfeito. Os caras não tem estado.
Discorda? Então me dê um exemplo oposto, de paz e harmonia em sociedades sem
estado. Exceto por contextos tribais e isolados, sem disputas por recursos não
há como vicejar em populações numerosas. Isto mesclado a falta de segurança
jurídica (garantida pelo estado) leva à exploração da mão-de-obra sem nenhum
direito. Se tu tem uma dívida em trabalho não haverá algum órgão a que
recorrer, caso discorde e será obrigado a pagá-la, nem que pela força (escravidão por dívida). Aliás, não vamos
longe... Tem um país tropical, bonito por
natureza, ai que beleza! Que em seus grotões isto é bem comum.
Mas em sociedades modernas existiria o verdadeiro anarquismo? Mesmo em
comunidades autonomistas (que seria a releitura atual do anarquismo, vide o
grego Cornelius Castoriadis), o mesmo só é possível dentro de territórios
protegidos por forças armadas que não interferem naquilo dada sua irrelevância.
Este é o caso de Christiana, dentro de Kopenhagen, dentro da Dinamarca que...
Ora! Veja só! Faz parte da OTAN! Com os mísseis dessa organização, até eu faço
troça de Putin...
Enfim, aprenda a diferenciar ideia, projeção, norma, ideal do que se
observa e analisa. Se não tu vai continuar dizendo que Bakunin era um ícone da
liberdade ao bradar contra o poder do estado e esquecer que ele era conhecido
pelos governantes europeus de quase 200 anos atrás como o “pai do terrorismo
internacional”. As ideias dele podem encantar jovens, mas nunca secarão as
lágrimas das mães que perderam seus filhos com os artefatos que plantou para
lutar por seu ideal.
Dois pontos que tu deveria procurar te informar:
1. O que é liberalismo na Europa e nos
EUA (não muda só a mão na estrada...);
2. O poder clânico na Somália (assim
como tribal na África), que manipula a ajuda da ONU e financia a pirataria no
Oceano Índico, Mar Vermelho e, sobretudo, no Golfo de Áden;
3. Metodologia em ciências sociais.
Este último é particularmente interessante com o tipo-ideal weberiano.
Em A Lógica da Ação Social, Max Weber define o tipo-ideal como uma
rede em que se joga na realidade e o que se encontra nunca é exatamente igual
ao conceito por ele estipulado (nos casos clássicos que analisou, a dominação
tradicional, a dominação carismática, a dominação racional-legal). O que se
encontra, frequentemente, são tipos mistos, híbridos, com maior ou menor grau
deste ou aquele elemento.
Eis aqui a súmula com o que tu tem
que brigar:
·
metodologia
(nominalismo v. essencialismo; tipo-ideal);
·
ideologias
e fenômenos sociais (reais);
·
partidos
nos EUA;
·
Chifre
da África.
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Se
concorda, compartilhe.
[1] Cf.
Por que os EUA não são socialistas? <http://www.institutomillenium.org.br/artigos/por-que-os-eua-nao-sao-socialistas/>.
Acesso em: 4 jun. 16.
[2]
Cf. Interceptor: Anarquistas e sua
vocação para ovinos. <http://inter-ceptor.blogspot.com/2016/06/anarquistas-e-sua-vocacao-para-ovinos.html?spref=tw>.
Acesso em: 4 jun. 16.
[3]
Esta terminologia não é mais adequada, pois o campo das ideias, a cultura, a
religião, as ideologias são bem materiais, isto é, influenciam a realidade
sendo fatores importantes em sua explicação.
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