Algumas perguntas que não querem calar: o Lulismo, a demonização de Eduardo Cunha e a arqueologia politica da bancada "BBB"
Por toda a parte que olhamos vemos pessoas deplorando a atual composição do plenario do Poder Legislativo Federal ("o pior Congresso Nacional em mais de meio século") e do presidente de sua Camara Baixa, deputado Eduardo Cunha (PMDB).
Tecem-se muitos comentarios pessoais com pretensões ora de reclamo, ora de protesto e tambem de analise. Quase todos invariavelmente tem por corolario a demonização da Camara dos Deputados e de seu presidente.
Associam Cunha ora a personagens ficcionais (a alegoria da Camara brasileira como a "House of Cunha" sugerida por jornalistas estrangeiros se tornou muito popular como descrição da presente legislatura) ora a personagens reais. E dentre estes sobressaem seus alegados financiadores de campanha eleitoral (no caso as empresas de planos de saude) e seus anonimos (ainda que bastante vocais e audiveis) eleitores evangelicos.
Em outras palavras, Cunha é apontado como o expoente ou representante mais paradigmatico da chamada bancada BBB, ou seja uma coalizão de evangelicos neopentecostais (o B da Biblia), de ruralistas (o B do boi ou dos bovinos) e de armamentistas ou defensores do porte de arma e da agenda "moral" (o B, da bala).
Defensora ou opositora de temas os mais divisivos e controversos tal coalizão tem sido apontada como força de "retrocesso", "conservadora", "fundamentalista", dentre outros adjetivos dotados de forte carga emotiva e simbolica.
Pondo de lado a motivação jocosa da metáfora do triplo B, não se pode deixar de registrar três circunstancias. A primeira destas é que o primeiro deles, os evangélicos, são alvo de racismo cultural na sociedade brasileira, e isto numa profundidade quase tão intensa e disseminada quanto seus maiores oponentes, os gays e lesbicas - que os acusam de "homofobia". Que os segundos, ruralistas, encabeçam um setor produtivo tradicional de nossa economia e importante gerador de divisas, não obstante o facto de protagonizarem historicos longevos de conflitos e violencia concernentes à regulação da posse da terra no Brasil, problema institucional que os opõe a indigenas, quilombolas, trabalhadores rurais e pequenos proprietários. E, por fim, os terceiros, armamentistas ou "moralistas", abraçam valores e visões de mundo que colidem com a ideologia postmoderna vigente no país - o que erroneamente os mesmos chamam de "Marxismo Cultural" mas que seria mais propriamente chamado de agenda ideologica do "politicamente correto".
Enfatizar isto, algo ausente nas ditas "analises" correntes, não implica em endossar comportamentos inadequados, abusivos ou até mesmo potencialmente ilicitos ou amorais dos atores agrupados na dita coalizão "BBB". Mas em por em relevo seu lugar e seu papel na sociedade brasileira, sua posição e significado, com o que eles se revestem de positivo e não somente de negativo, como tem estado pervasivamente em voga. Afinal estes mesmos rótulos depreciativos e desqualificadores tem sido precisamente o que solda este "bloco" centro-direitista (Cunha rechaça a pecha de "conservador" como se notou por sua entrevista ao Programa Roda Viva), gera uma solidariedade organica entre seus membros, padroniza suas preferencias, objetivos e metodos de ação coletiva. Portanto cumpre assinalar os autores do rotulo BBB incorrem em riscos politicos e morais tão ou ate mais intensos e perigosos quanto aqueles a quem definem como inimigos. Em outras palavras, criaram um espantalho ou fantasma a que pudessem espancar ou esconjurar. Na impossibilidade de faze-lo facilmente se desesperam e entregam-se à histeria coletiva e à amarga indignação.
Ao faze-lo privam-nos da elucidação de aspectos e condicionantes que levaram ao aparecimento de tal convergência de interesses societais. Interesses estes aos quais, em conjunção com o financiamento privado de campanhas eleitorais e à ausencia de regulamentação dos meios de comunicação - outros dois tópicos ou setores igualmente demonizados e geradores de histeria -, se atribui uma verdadeira "tempestade perfeita" (perfect storm) contra os direitos sociais e civis no Brasil. Em outras palavras eles deixam se analisar as camadas ou vestigios do processo politico que possam indicar a origem dos movimentos e forças sociais observadas. Ao deixarem de compreender a bancada BBB, seus antecedentes e motivações na busca pelo poder, deixam de fazer sua arqueologia. E é isto, preencher esta lacuna das "analises" e discursos em voga, que pretendemos fazer aqui.
Isto não deixa de afetar a dinamica e a morfologia das instituições de um modo peculiar. Para os analistas politicos o mais relevante aspecto do presente momento da legislatura tem sido a tremenda flutuação das maiorias congressuais à mercê da curiosa hermenêutica que Cunha aplica ao Regimento Interno da Câmara. Decisões legislativas como a da redução da maioridade penal, da regulamentação das terceirizações e da extensão do tempo de aposentadoria dos magistrados do STF tem atraido crescente atenção e preocupação dos formadores de opinião.
Para a vasta constelação partidaria, que tem o PMDB em seu nucleo e uma miriade de partidos medios e nanopartidos nas suas orbitas, o "experimento" que se observa também não deixa de ser interessante. Não somente pois se registra um realinhamento de preferencias em sentido conservador como correntemente se apregoa (mas não se demonstra facilmente) mas também pelo facto das facções legislativas e grupos de interesse se redistribuem tanto transversalmente entre governismo e oposicionismo, como entre legendas de centro, de direita e até mesmo de esquerda como se nota por variados episodios controversos:
- a presença de evangelicos tambem no PSB, no PT e ate mesmo no PSOL como se viu pelo episodio do Cabo Daciolo;
- a presença de deputados financiados pelo "armamentismo" no PSB, ou pelo ruralismo no PMDB, e ate mesmo pelos evangélicos no PT;
- a presença de deputados "moralistas" (Bolsonaro) e evangelicos (Feliciano, Malta) em partidos da coalizão governista;
- a cisão (pouco notada) entre oposicionistas sobre as teses impeachmentistas e teses intervencionistas contra a presidencia de Dilma Roussef, entre os partidarios da radicalização dos protestos de rua e panelaços (Caiado, Bolsonaro etc) e os que favorecem uma atuação mais parlamentar e institucional no mesmo objetivo (Aecio, FHC, Serra, Alckimin, Agripino, etc);
- a cisão (mais notada e enfatizada) entre as forças situacionistas entre o PT e o PMDB, este ultimo agrupando todos os demais partidos da coalizão legislativa, o que obriga o petismo a aliar-se às oposições de extrema esquerda saidas de seu proprio seio (PSTU, PSOL, PCO etc).
- a presença na base de apoio ao atual governo de elementos que apoiaram o candidato oposicionista à Presidencia da Republica, Senador Aecio Neves (PSDB);
Logo, desta simples coleção de exemplos se refuta nas teses correntes a premissa da existencia de dois campos homogeneos, compactos e radicalmente opostos, polarizados e irreconciliáveis. Ao invés disto tem-se algo transversal, complexo e intrincado. E isto nos gera novas indagações e questionamentos.
A primeira e mais obvia das questões é como uma tal coalizão parlamentar, tão ampla e heterogenea, não implode. A resposta é igualmente obvia e clara: o momento político de extrema fragilidade do governo petista e da Presidencia da Republica, diante duma recessão e indicadores economicos negativos ha muito não documentados, duma vertiginosa queda dos seus numeros de aprovação do desempenho junto à opinião publica e duma vasta e longa investigação criminal (Operação Lava Jato) da PF e do MPF nas entranhas do Estado Brasileiro e de seus gigantescos braços empresariais.
Menos obvia e clara, quase sempre olvidada, a segunda é com respeito à maneira como a mesma veio a existir. E isto, sem pretender recuar a periodos mais remotos da historia política brasileira, desdobra-se em duas questões outras.
Por qual coligação eleitoral se elegeram Eduardo Cunha e os legisladores da bancada BBB?
Quem a negociou politicamente nos estados passando por cima das percepções e objetivos dos diretorios?
A resposta à primeira é bem conhecida. Cunha se elegeu formalmente por uma supercoligação entre o PT e o PMDB num estado altamente estrategico. Mas esta não é a questão. Não quero colocar em relevo o PT pois todos sabemos que o PT não queria se coligar com o PMDB nem no RJ e nem no ES, para citar apenas dois estados e não os outros 25. O que se quer por em relevo é quem IMPÔS ao PT tal coligação que lhe reduziu a bancada em 20% e aumentou exponencialmente a dos evangelicos. E isto nos leva à segunda resposta.
Até aqui não mencionamos o nome do ex-presidente da República Luis Inácio Lula da Silva. E isto não se deveu a uma omissão intencional ou planejada. Tampouco se buscou coloca-lo no centro do processo politico brasileiro como muitos se habituaram a faze-lo nos ultimos dez anos, talvez inspirados pela repercussão social e geopolitica dos modelos populistas e personalistas de liderança politica no continente e no mundo, talvez pelo que se considerava o renovado impacto do carisma pessoal como ha décadas não experimentado pela sociedade brasileira. Talvez - e isto parece obsessão de certos grupos empresariais de comunicação isolados em seu mesmo segmento - pela necessidade de demoniza-lo, exorciza-lo, esconjurá-lo - o que teve por efeito não-antecipado a magnificação sem precedentes, na Nova Republica, do carisma e da imagetica populista vinculada ao ex-presidente. Nenhuma destas tendencias ou manifestações tem contribuido na compreensão do lulismo e de sua função na emergência da bancada BBB e de sua personificação em Eduardo Cunha.
Contudo é inevitavel deixar de associar o lulismo às manifestações agora presenciadas e inclusive, como crescentemente se evidencia, pela instabilidade do presente governo bem como de sua base de apoio no Legislativo. Isto quer dizer que Lula tem sua parcela de responsabilidades na emergencia da coalizão BBB?
A resposta é afirmativa pois sua primeira eleição se deu em coligação com um partido maciçamente composto por parlamentares evangelicos e por eles controlado (o PL, depois chamado PR). Em seus dois mandatos o suporte das bancadas confessional e ruralista foi essencial para a estabilidade do governo e a viabilização da governabilidade - numa época em que o PMDB apenas parcialmente integrava o governo e as maiorias nas votações nominais eram estreitas.
Em seu segundo mandato foi aprovada a Lei Geral das Religiões, demanda dos grupos evangelicos para a ratificação no Congresso Nacional da Concordata Brasil - Vaticano - tratado internacional assinado entre Lula e o ex-pontifice Bento XVI, à revelia da sociedade brasileira e do principio da laicidade do Estado. Igualmente naquele mandato ganhou corpo também a discussão do Codigo Florestal, o qual aguçou a reação dos interesses do agronegocio, dentro e fora da coalizão de governo, mas certamente opondo-os às preferencias expressas do Executivo.
No segundo governo Lula foi aprovado o III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) que, não obstante seu caráter socialmente necessario na consolidação dos direitos, da identidade e da proteção das minorias etnicas, sociais e de genero, antagonizava a coalizão anteriormente descrita.
E que justamente por estes motivos, somada à inabilidade da Presidencia e ao extremismo das preferencias do partido do Executivo (o PT) e ao radicalismo de seus aliados (sobretudo os da blogosfera e redes sociais), tais interesses vieram a galvanizar-se, a identificar seus objetivos comuns e a se apresentar como tais.
Feito este breve exercicio de arqueologia política temos com clareza o quanto o BBB e seus oponentes se acham enredados numa complexa trama de interdependencia. Podemos sintetizar nosso aprendizado na forma de algumas breves conclusões.
Feita tais ponderações concluimos ser erroneo senão mal-intencionado identificar a bancada BBB com oposicionismo ou como governismo isolada e inequivocamente. Trata-se de fenomeno transversal.
Igualmente incorreto é ver no BBB um risco à governabilidade da sociedade brasileira, dado que o mesmo tem sido essencial na estabilização dos ultimos governos.
A hermeneutica que Cunha faz do Regimento Interno da Camara é algo impressionante e merece ser melhor estudada. Cria precedentes. Representa uma ameaça? Talvez.
Esta flexibilidade da exegetica dele ameaça a republica e a democracia?
Talvez sim, talvez não. A questão é que esta interpretação elastica do regimento interno vem num clima de FLA X FLU muito forte. A esquerda refém de minorias e indisposta a soluções de compromisso. O PT deixar-se guiar por um extremista igual Jean Wyllys é demais pra mim. Não arruma nada, exceto autoconfinar-se num ghetto e sair da tendencia central das preferencias da legislatura. Não há saídas e nem solução.
Por fim, o expediente da demonização, que muitos dizem estar focado na imagem, nas origens sociais e ate no vocabuláriio de um ex-presidente, é muito mais difundido e generalizado do que se supõe. E por isto mesmo nauseante e asfixiante. Sobretudo para seus proprios usuarios e praticantes, quando não apenas para seus alvos sistematicos e preferencias. E se antes apenas alguns nele se autoenvenenavam, outros, que se queixam dos primeiros, também não deixam de provar do amargo "remédio".
Rio de Janeiro/RJ, 29-V-2015.
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* Por José Roberto Bonifácio, Sociólogo (UFES) e Cientista Político (IUPERJ).
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A maioria dos juristas consultados vê irregularidade no procedimento, mas há precedentes favoráveis. http://brasil.elpais.com/ brasil/2015/07/03/politica/ 1435884890_872581.html
André Gonçalves: "Só existem episódios como a reversão da votação da maioridade penal porque o salve-se quem puder é o valor mais consolidado da sociedade brasileira"http://bitly.com/1GQNPZ8
Cruzamos os dados das votações de três grandes temas que passaram pela Câmara esse ano. Atingindo direitos históricos dos trabalhadores, consolidando a influência do poder econômico sobre a política e atacando direitos humanos, 213 deputados se alinharam com Eduardo Cunha (PMDB-RJ) em todas essas decisões. O número representa 41% do total da casa, composta por 513 parlamentares.
Veja a lista: http://migre.me/qB5Uf
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