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"Neoliberalismo" não existe... ou de longe nem todo mundo é igual.
Por José Roberto Bonifácio*
Os anos se vão e algumas polemicas sempre permanecem. Mesmo que o foco da atenção
sobre elas oscile de tempos em tempos, ora encobrindo-as, ora explicitando-as.
Quando se tratam de ideias político-econômicas isto não deixa de ser verdade. Assim o é, por
exemplo, com o “Neoliberalismo”, que, não bastasse o prefixo “neo” e o sufixo “ismo”
agregados ao substantivo “liberal” (para alguns é adjetivo altamente pejorativo), já suscita as
mais intensas e duradouras controvérsias.
É o que se depreende de eventos tão dispares quanto o discurso do chefe do Executivo de um
estado brasileiro periférico (“Não sou tão neoliberal assim!” afirmou Renato Casagrande,
governador socialista do ES); o problema do superávit primário e da taxa de juros na política
macroeconômica do Banco Central e do Ministério da Fazenda (em que se discute a presença
de certas “heranças malditas” na governança das instituições econômicas do Estado) com o
consequente rebaixamento da nota (BBB-) da agencia de rating Standards & Poor ao governo
brasileiro; a questão da improbidade administrativa na estatal Petrobrás pela aquisição
superfaturada de refinarias no exterior (um ícone da ideologia estatista e, por isto mesma, tida
por um alvo reincidente de discursos “neoliberais”); e as crises geopolíticas ucraniana e
venezuelana (onde em tese se opõem mundialmente os “neoliberais”, de um lado, e a
esquerda, do outro).
Quase sempre, se não na totalidade dos casos, e de um modo praticamente automático a
associação mental e discursiva que se faz é a fatos históricos saturados de negatividade e
rejeições. Assim o é quando se diz que “neoliberalismo” implica em autoritarismos e, mais
especificamente, em golpes de Estado, como o do Chile em outubro de 1973¹, bem como ao
regime subsequente.
Não é uma boa idéia associar esta corrente de pensamento econômico ao regime politico
chileno do falecido Gal. Pinochet, como se os seguidores dum von Mises³ pudessem ser assim
tão indistinguíveis de Milton Friedman e dos monetaristas da Escola de Chicago, e mais ainda -
erro muito propalado no Brasil nos livros-textos mais vulgares de economia¹ - e dos postkeynesianos
da Princeton University, onde se formaram os formuladores do Plano Real, p.ex.
Enfatize-se em primeiro lugar que Friedman é um MONETARISTA, não um "austríaco". E esta
escola ainda que defenda o livre mercado, construiu seus postulados mais pela reformulação
de axiomas da obra keynesiana do que pela reapropriação das contribuições de Smith. A
intervenção estatal ainda é um componente forte na obra de Friedman, ainda que em casos
limite (é sintomático o dito do ex-presidente Nixon “We re all Keynesians now!”, a quem
Friedman assessorou no episodio da desvalorização do dólar em 1971, acabando com a
convertibilidade automática deste com o ouro).
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Se nem o economista mediano que é formado no Brasil conhece adequadamente a distinção
entre escolas de pensamento econômico, o que ser dito de sociólogos e outros estudiosos de
Humanidades que pretendem dar "pitacos" na seara alheia?
A rigor, no Brasil, o uso reincidente do adjetivo “neoliberal” é indicador de mediocridade e
indigência intelectual, preguiça cognitiva do interlocutor. Em verdade seria uma senha a
respeito de quando e em que situações se deve encerrar um debate com quem quer que seja.
Cumpre entretanto desvendarmos um pouco mais o que se acha por trás disto, que surpresas
ou descobertas estas questões e controvérsias podem nos oferecer.
Agora sendo mais incisivos e diretos: Por acaso existe, em toda a historia do pensamento
econômico, uma doutrina que se chame a si mesma pelo nome de "Neoliberalismo"?
Mas que tipo de ideologia? Quem a engendrou? (não vale dizer que foi o "Consenso de
Washington" nem as organizações multilaterais como o FMI, Banco Mundial e congêneres...)4
Neoliberalismo não existe4... como escola de pensamento econômico e quem fez de fato as
reformas ditas "liberalizantes" nos EUA, Europa Continental e America Latina, foram na
verdade formuladores de políticas (policy makers) ou tecnocratas ("tecnopols") apoliticos,
quando muito pós-keynesianos, socialistas e até estruturalistas.
Na verdade, a crença em mercados plenamente livres não foi o que desencadeou a grande
onda de desregulamentação e desestatização nos países do Ocidente a partir dos anos 1970.
Não foi o Nobel de Economia dado a Hayek¹ e posteriormente a Buchanan quem atestou o
prestigio de suas idéias. A liberalização das finanças e do comercio decorreu mais de inovações
tecnológicas que permitiam que as transações passassem a se dar em tempo real, encurtando
espaços e reduzindo incertezas.
Se colocássemos Hayek numa sala com Friedman ou com Stigler eles fatalmente "se pegam" e
se matariam entre si dada a aguda disparidade de idéias e propostas de sociedade.
Infelizmente, a vasta, esmagadora, maioria dos acadêmicos e pesquisadores (para não falar do
senso comum) de Humanidades no Brasil ainda raciocinam como Caetano: "de longe todo
mundo é igual!"
O individuo que é liberal quanto à economia pode não se lo quanto a temas morais (onde este
termo soa como "libertinagem") e vice versa. E perfeitamente coerente. Hayek³ p.ex.
deplorava ser chamado de liberal em sentido norte americano (o que significa
intervencionista, partidario de politicas sociais ativas...) e preferia chamar se "conservative",
ainda que não se posicionasse contra políticas de renda mínima, salário social para não deixar
os trabalhadores passarem fome na recessão.
Mas Keynes e Beveridge venceram a batalha ideológica e ele foi ostracizado e estigmatizado
no mundo anglos-saxonico¹.
Na verdade, o que hodiernamente se rotula como políticas "neoliberais" são em verdade
políticas intervencionistas através das quais se intenciona abrir mercados ou eliminar
restrições à concorrência.
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Tanto no Chile de Pinochet (onde pontificou a assessoria dos "Chicago Boys", alunos de
Friedman) quanto na Argentina de Martinez de Hoz e depois de Menen e Cavallo, quanto no
México de Salinas, no Brasil de Collor e Cardoso, na América de Reagan, a Inglaterra de Tatcher
e Major, a França de Mitterrand, a Espanha de Gonzales... em todos estes experimentos a
propalada dicotomia "Estado versus Mercado" não se verificou.
Políticas intervencionistas ativas e pesadas estiveram presentes na gestão da moeda, como
também do comercio exterior, de setores industriais relevantes, como tambem da agricultura
e das atividades estrativistas, no fisco: nos mínimos aspectos e repercussões da vida
economica e material das nações.4
O período "neoliberal" no Brasil foi o momento em que mais se emitiu Medidas Provisórias,
numa atividade legislativa (ou legiferrante) frenética e intensa.
Em verdade, tendo dito isto, o que o senso comum chama de "Neoliberalismo" não é mais do
que uma espécie daquilo que o filosofo Karl Raymund Popper denominava "engenharia social",
um conceito já identificável ao menos desde Platão e sua obra "A República" porém
comumente associado à "Escola Austríaca", que a condena veementemente.
Ainda assim Friedman e "neoliberalismo", enquanto termos ou vocábulos intercambiáveis, se
acham firmemente vinculados a esta escola. E todos juntos às chamadas teorias NEOLIBERAIS
(sic) da "ordem espontânea", como se Hume, Mandeville, Smith, Ricardo e mesmo Marx não
houvessem existido.
O termo, de um modo inusitado, tem muito menos a ver com , do que com os usos
corriqueiros e inconsequentes que se faz na atualidade do que a maneira como o economista e
sociólogo alemão Alexander Rüstow o definiu (enquanto uma descontinuidade ou desvio do
liberalismo clássico da Escola de Manchester e sua fundamentação hiperindividualista e uma
resposta às emergentes doutrinas coletivistas da ordem social, como o socialismo e o nazifascismo)
² em fins dos anos 1930, no famoso Colóquio Walter Lippmann.²,³
Rüstow, que por seu turno é considerado um dos pais fundadores do chamado
Ordoliberalismo (Escola de Freiburg)7, também se associa à famosa "Economia Social de
Mercado" alemã do pós-guerra, como também tem em seus antecedentes a chamada Escola
Historica de Economia (onde pontificaram cientistas sociais relevantes como Sombart e
Weber, como também o britanico H. Spencer e o austriaco J. A. Schumpeter).6
Sequer convém mencionar a chamada "Disputa pelo Método" (Methodenstreit, ocorrida entre
as décadas de 1860 e 1880) da Escola Historica (Prussiana, representada sobretudo por Gustav
von Schmöller) com a Escola Austriaca (representada por Carl Menger) e como esta originou o
próprio rótulo "Escola Austríaca", igualmente pejorativo (por iniciativa do prussiano von
Schmöller, ele mesmo e seus seguidores rotulados como Kathedersozialisten, "Socialistas de
Cátedra").7
Também seria estéril e desnecessário verificar a oposição atual entre o "neoliberalismo"
enquanto expressão do poder naval anglo-americano ("atlantismo") e o social-nacionalismo
enquanto expressão do poder terrestre russo ("eurasianismo", para muitos cada vez mais um
"neo-sovietismo") por ocasião da crise ucraniana.
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"Se você é neoliberal então você é o inimigo", define taxativamente o cientista politico da
Universidade Estatal de Moscou Aleksandr Dugin, ele mesmo herdeiro intelectual do insigne
jurista alemão Carl Schmitt (a cujas idéias, como vimos, se opunham Rüstow e os seus...) e
propugnador da chamada Quarta Teoria Política (Fourth Political Theory ou 4TP; para os
detratores uma reencarnação do "Nazional-Bolchevism" ou, mais sugestivamente:
"NAZBOL"...).8
Muitos assim querem vislumbrar o atual embate geopolítico entre Moscou e Washington. De
um lado tem-se o chamado "Ocidente", identificado com as instituições da União Europeia e
da Organização do Tratado do Atlântico Norte (UE/OTAN), tendo por protagonista o
presidente norte-americano Barack H. Obama, um cientista politico (dos diversos que
presidiram seu país como Madison e Woodrow Wilson) de inclinações social-democratas (que
nos EUA se identificam como "progressive" ou "liberals") e rotulado como caudilho por seus
oponentes republicanos (GOP, Tea Party e similares).
De outro lado, a Rússia de Vladmir Putin (ele mesmo um economista com uma tese que veicula
ideias similares à de desenvolvimentistas latino-americanos, como Celso Furtado, como
também da Escola Histórica, de um Friedrich List e um Schumpeter) e esta via de regra
secundada pela esquerda mundial, particularmente latino-americana, como também por
países do chamado "front de resistencia ao neoliberalismo" (Global Revolutionary Alliance),
como Coréia do Norte, Irã, Síria, Sérvia, Venezuela, Bolivia, Nicarágua, Brasil, Argentina,
Uruguai e outros, como também pelos BRICS.
Esta esquematização por certo olvida o facto de que o primeiro grupo hoje se encontra num
grave impasse economico decorrente de pesados déficits orçamentários e de intrincadas
conexões de seus bancos centrais com um sistema financeiro globalizado (porém
corporativamente organizado como iron triangles tecnoburocráticos a manipular a moeda e
distorcer o sistema de preços em prol de interesses estreitos e de curto prazo), o que contraria
algumas das teses centrais do chamado pensamento "neoliberal". Já o segundo grupo, em
melhor situação, tem sua posição no sistema internacional condicionada intrinsecamente à
desigual dotação de fatores de produção no globo, portanto repousando sobre o que outrora
um certo ponto de vista teórico (smithiano, ricardiano) chamaríamos "teoria das vantagens
comparativas" (população, recursos naturais, petróleo, gás, energia, agricultura etc).9
Enquanto os governos dos primeiros praticam domesticamente uma série de dispendiosas
políticas econômicas expansionistas (notadamente dos gastos militares, como é o caso dos
EUA, ou da assistência social, caso dos europeus) e anticíclicas, os segundos governos dos
praticam agressivas políticas comerciais (casos chinês e indiano), como também de
desregulamentação de mercados laborais (caso brasileiro, sul-africano, chinês e indiano) e da
moeda (caso chinês), e de desnacionalização da industria (caso geral, inclusive russo).
Pelo prisma mais abstrato das idéias econômicas, se pudéssemos construir uma relação direta,
intrínseca e de mão única entre teoria econômica e política econômica (o que é tarefa das
mais inglórias e arriscadas, ainda que não faltem praticantes), diríamos que os primeiros
estariam mais para Keynes/ Beveridge e Friedmann e não de Mises e Hayek como pretendem
seus detratores. Enquanto os segundos estariam em algum lugar entre um Adam Smith e um
List ou um Schumpeter e não de um Marx, como pretendem seus simpatizantes, e de um
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historista como Schmöller e ainda um liberal moderado como Hjalmar Schacht, ministro das
finanças de Hitler, como pretenderiam seus detratores. Esta observação basta para ilustrar
como corriqueiramente vislumbramos a realidade de uma maneira oposta à que ela
efetivamente se apresenta. Em termos de institucionalidade econômica quase todos se situam
um pouco além ou um pouco aquém do modelo estatista da “economia social de mercado”
que prevaleceu na maioria dos países europeus e ocidentais do pós-guerra (no caso do BRICS,
a Russia e o Brasil talvez sejam os que se aproximem mais e, no do G7 os EUA e o Reino Unido
os que mais se afastam).
Não estamos, definitivamente, de volta ao período histórico que antecedeu à ruína da antiga
União Soviética, evento ocorrido há quase um quarto de século (1991) ao qual vulgarmente se
atribui a afirmação mundial do discurso do “fim da história”, do “there’s no alternative”, da
irrestrita hegemonia global do “neoliberalismo”.¹ Talvez estejamos diante de uma polarização
geopolítica no seio do próprio capitalismo (um embate List versus Smith, para dar tonalidades
mais classicas), algo há muito previsto por escritores como Henry Kissinger, mas ainda é muito
cedo fazer assertivas fortes do tipo “voltamos à Guerra Fria”.
Assim sendo ilusão de ótica do esquerdismo latino-americano em geral (hoje hegemonizado
por populistas e semipopulistas) e brasileiro em particular (este crivado que se acha pela
polarização entre o dito "socialdesenvolvimentismo"¹ do PT e o "social-liberalismo" do PSDB) é
perfeitamente compreensível.
Em meio a tamanhas simplificações o observador ou analista sente uma certa vertigem e malestar.
Especialmente se for compelido a aprender, memorizar e situar toda esta incrível
quantidade de nomes, lugares, ideias e propostas. De uma maneira talvez intencional o texto e
o arrazoado que se desenvolveu até aqui mais causou duvidas e confusões do que certezas e
esclarecimentos. É mais cômodo e prático resumir tudo isto a um conjunto de oposições,
dicotomias e polarizações mais básicas, ainda que ao sacrifício da exatidão lógica e factual.
Enfim, eis ai a explicação do porquê da formula de Caetano obter tamanho sucesso, aceitação
e durabilidade em nosso meio (no mais das vezes pseudo) intelectual.
_____________________________
*Sociólogo (UFES) e Especialista em Ciência Política (IUPERJ). Professor da UVERSITA - Universidade
Aberta (SP) e do curso de Pós- Graduação Lato Sensu Gestão de Instituições sem Fins Econômicos com
ênfase em Medidas Sócioeducativas da Faculdade Unidas (ES). Email: bonifacio78@gmail.com.
Notas (Recomendado somente a quem interessar a checagem das fontes e o prosseguimento
fundamentado da controvérsia):
¹Ver: ANDERSON, Perry: Balanço do neoliberalismo. In SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.)
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995, p. 9-23. Ver também: SADER, Emir. 10 Anos de Governos Pós-neoliberais no Brasil: Lula e
Dilma. Boitempo Editorial, 2013.
6
²"The colloquium defined the concept of neoliberalism as involving “the priority of the price
mechanism, the free enterprise, the system of competition and a strong and impartial state.”
To be "neoliberal" meant that a modern economic policy with State intervention is required.".
Cf.: http://en.wikipedia.org/wiki/
Notem como este “neoliberalismo” sofre oposição dos chamados "economistas
constitucionais" (Coase, Arrow, Downs, Olson, Buchanan, Tullock) vinculados à Teoria da
Escolha Pública (public choice theory), da Escola de Economia Politica da Virginia, eles mesmos
rotulados como "neoliberais" Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/
³ http://www.mises.org.br/?
4 http://www.mises.org.br/?
5 http://en.wikipedia.org/wiki/
6 http://en.wikipedia.org/wiki/
7 http://en.wikipedia.org/wiki/
8 http://www.4pt.su/pt-br/
9 Como se depreende pelas origens intelectuais do termo "BRIC" (depois BRICS), da parte de
Jim Tip O’Neal (Goldman Sachs): http://en.wikipedia.org/wiki/
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