São muito correntes no discurso hodierno, da imprensa, formadores de opinião, redes sociais, blogosfera e tais quais aqueles argumentos ou teses de que "não existem partidos direita no Brasil" ou ainda de que "não existem partidos de oposição no Brasil".
As duas assertivas quase sempre se sobrepõem e, quando combinadas lógicamente, engendram o corolário de que a democracia brasileira se acha ameaçada ou sob risco de extinção por métodos autoritários .“Ditadura comunista” ou “ditadura bolivariana” são termos que completam ou acompanham frequentemente este tipo de diagnostico.
Tais assertivas tem se difundido e circulado com ainda maior frequencia com a formalização de novissimos partidos políticos no TSE, como a Rede Sustentabilidade e o Partido Novo, ocorrida este mês. Há ainda outras tentativas de formalização em curso,algumas mais sérias como a do Partido Conservador (CONS), outras nem tanto, como a do Partido Nacional Corinthiano (PNC). Por outro lado, as mesmas adquirem repercussão ainda mais ampla com a expectativa de que os recentes movimentos sociais (Movimento Brasil Livre, Vem Pra Rua, Nas Ruas, Revoltados Online etc) se tornem legendas formais ou se incorporem às existentes.
Do mesmo modo, estas afirmações se revestem de significados ainda mais impactantes num contexto em que se decide e se implementa a interdição do Supremo Tribunal Federal (STF) aos financiadores privados de campanha eleitorais, a pretexto de assegurar a isonomia constitucional do voto e a autenticidade da representação politica.
Há que se indagar sobre seu conteúdo empírico ou verossimilhança como também por sua consistência lógica ou argumentativa. Portanto, antes de responder cabalmente se tais afirmações são falsas ou descabidas, cumpre analisar algumas suposições ou hipoteses implícitas nas mesmas.
Basicamente três condições políticas se acham ocultas por trás destas assertivas e cada qual implica numa maneira de representar o conflito político, sendo inerentes ou não à modernidade ou aos regimes democráticos. Disto derivam riscos morais (artificiais ou não) assim como circunstancias que podem restringir ou facultar cursos de acção aos agentes políticos, sendo moralmente arbitrárias ou não.
Em primeiro lugar, como é bem sabido, a condição politica "ser de direita" ou "ser de esquerda" é algo que advém da modernidade e sobretudo do periodo da Revolução Francesa, com a dicotomia entre Girondinos e Jacobinos (ou Montanheses). Corresponde a uma representação por assim dizer topografica ou espacial dos conflitos politicos da democracia. Nem sempre isto tem o mesmo sinal ou intensidade de país para país, região para região e mesmo dentro dum mesmo país ou região ao longo do tempo. Se no sec. XVIII o eixo direita-esquerda se definia em torno de posicionamentos quanto ao tema da desigualdade hoje o mesmo deslocou-se para distintas opções ou combinações de política macroeconômica tendo em vista o tradeoff entre desemprego X inflação previsto na Curva de Phillips. Há estudiosos que afirmam ter o comportamento ideológico declinado nas democracias consolidados (Arendt Lijphart) e há outros que afirmam ser ele ainda fulcral dentro das mesmas (Norberto Bobbio e outros). Não há consenso dos estudiosos com respeito a isto. Semelhantemente, não nos estenderemos mais na discussão acerca do que é "ser de esquerda" no mundo contemporaneo pois isto excederia os limites e a preocupação deste escrito.
Em segundo lugar e um pouco menos conhecida, a condição politica do "ser de oposição" ou "ser de situação" é algo bem mais antigo. Advém das democracias antigas e medievais (anatólicas, gregas, fenicias, medievo-italianas, nórdicas ou alemãs etc), mas sua consagração institucional se deve à Revolução Gloriosa na Inglaterra seiscentista, e à instituições liberais como o Bill of Rights e o Habeas Corpus por ela engendradas. Corresponde a uma representação de caráter "funcional" (à falta de termo melhor...) do conflito politico, facultando a alternancia de poder entre as elites e a renovação de idéias e políticas, mas não é inerente às democracias, estando presente em outras formas de governo, como a oligarquia, a aristocracia e a plutocracia. Do mesmo modo como a dicotomia ideológica, nem sempre isto tem o mesmo sinal ou intensidade de país para país, região para região e mesmo dentro dum mesmo país ou região ao longo do tempo. Contudo alguns países ou regiões são estruturalmente mais propensos ou oferecem mais incentivos ou receptividade ao comportamento oposicionista do que outros.
Por fim, com respeito à distinção, resultante das condições anteriores, entre comportar-se ideologicamente e comportar-se "fisiológicamente" temos algo também antigo e muito disseminado mundialmente. Corresponderia ao que poderiamos denominar uma representação motivacional dos conflitos politicos. Do mesmo modo como a dicotomia ideológica, nem sempre isto tem o mesmo sinal ou intensidade de país para país, região para região e mesmo dentro dum mesmo país ou região ao longo do tempo. Apesar disto o termo "fisiologia" aqui empregado é uma invenção do vernaculo politico brasileiro e se sintetiza anedótica e cínicamente na máxima pseudofranciscana do falecido deputado e Constituinte peemedebista Roberto Cardoso Alves, o Robertão: "é dando que se recebe!"
Em inumeras ocasiões as motivações ideológicas nem sempre são claramente distinguiveis das fisiológicas. A recordar o recente filme "Lincoln", do diretor Steven Spielberg, onde o famoso presidente americano confessa ter se valido do comportamento fisiológico dos legisladores para aprovar a emenda constitucional da abolição da escravatura naquele país. No caso brasileiro a decisão politica analoga, da regente Princesa Isabel, também foi facilitada por motivos fisiológicos - a crer no historiador José Murilo de Carvalho e contra analises marxistas tradicionais que apontam a inviabilidade da mesma pelo prisma do suposto comportamento ideológico dos legisladores imperiais.
É relativamente facil notar que as representações do conflito politico de caráter "funcional" e motivacional são muito correlacionadas entre si. Do mesmo modo a representação topografica ou espacial do mesmo conflito já foi muito correlacionada à representação "funcional" em alguns países embora nem sempre à representação motivacional. Esta quase sempre é contingente sobre uma série de fatores históricos, sociológicos e institucionais.
Cruzando as duas primeiras condições tem-se que, na trajetória das democracias consolidadas "ser governista" e "ser de direita" foi a norma até o limiar do século XX. Desde a Primeira Guerra, e sobretudo como decorrencia das revoluções que assolaram o Velho Continente, a democratização avançou no sentido de propiciar alternância de poder e a subida da esquerda (social-democratas) em diversos países. Apos a Segunda Guerra Mundial este movimento se intensificou sobretudo na Europa e vem perdurando desde então, com oscilações periódicas e pendulares. Na América Latina tais movimentos foram bem mais lentos e tardios, mas sobretudo apos as transições das ditaduras sessentistas e setentistas para as atuais democracias, tem experimentado oscilações de padrão similares ao europeu. Vamos limitar nossas comparações a estas duas macroregiões globais.
Com respeito ao Brasil o que se pode afirmar respectivamente às três condições?
Com respeito à primeira condição, tem-se que aquelas afirmações encobrem uma meia verdade: há partidos de direita (DEM, PP, PSD, PSC, etc) ou comprometidos com um ideário ou programa politico conservador. Contudo, eles são notóriamente são fisiológicos, não ideológicos em seu efetivo comportamento global. Talvez um parlamentar ou outro se porte ideológicamente mas isto não altera o quadro. Tal se dá por alguns fatores.
Em primeiro lugar, os incentivos ao primeiro tipo de comportamento são maiores que os oferecidos ao segundo tipo, como decorrencia das caracteristicas do sistema eleitoral, do eleitorado e da amplitude de nosso Estado vis-à-vis à sociedade e à economia. Dum lado o governismo oferece multiplas benesses para cooptar os partidos, sejam de direita ou de esquerda. De outro, e isto introduz um segundo fator, o eleitorado que tem sofisticação intelectual (escolarização, habito de leitura de jornais, participação associativa etc), e que portanto seria susceptivel a mensagens de cunho ideológico, é parcela infima da população.
Logo não há pressão compativel pelo lado da demanda pelo comportamento ideologico de modo a contrabalançar as motivações fisiológicas inerentes a nossa classe politica. O problema que os partidários daquelas falácias argumentativas detectam não é inerente ao sistema partidário, mas da sociedade brasileira. Pelo aspecto do sistema eleitoral é notorio que não ha fiscalização efetiva do representado sobre o representado. Estes não prestam contas a ninguem.
Outra coisa que reforça isto é o sistema eleitoral de lista aberta combinado com coligações eleitorais proporcionais. Reiterados estudos dão conta de que menos de 5% a cada legislatura se elege com seus proprios votos. Cada coligação pode lançar ate o dobro do numero de vagas em disputa - logo tem-se informação demais para o eleitor medio processar.
Respectivamente à segunda condição, como se viu do que foi dito da condição anterioro eixo atitudinal situacionismo/ oposicionismo no Brasil é sobremaneira também impactado pelas caracteristicas federativas do Estado com grande concentração de recursos na União. Ou seja, pela governança publica com tremendo compartilhamento de poder em outros niveis de governo.
Governadores e prefeitos de oposição se acham num jogo onde sua estratégia é claramente dominada face ao Presidente da Republica. Em outras palavras: não ha nada que possam fazer para melhorar sua propria situação. Assim ocorreu, por exemplo, com os governadores estaduais tucanos apos a eleição de Lula (2003), do mesmo modo como ocorrera com os governadores petistas durante a Era FHC e com os mandatários eleitos pela ARENA/PDS sob Sarney.
Por fim, no tocante à terceira condição,aplica-se o sobre o eixo comportamental ideologia/fisiologia o mesmo que já se disse sobre as condições pretéritas. Contudo deve-se acentuar a questão do tamanho do Estado e sua inescapável capacidade de cooptação sobre a classe politica e sobre as forças da sociedade. Assim como a Direita ideológica do periodo 1946/64 se tornou acentuadamente fisiologica no meio século que se seguiu ao golpe de 1964, o mesmo ocorreu à Esquerda ideológica da Nova República (pós 1985). E frise-e: tal mudança comportamental ocorreu sem que isto implique em mudança de identidade política.
Com respeito às assertivas do senso comum aqui questionadas o problema que se coloca está essencialmente na estrutura (normas, regras, instituições) e não necessariamente nos agentes políticos, sejam estes parlamentares, executivos ou eleitores. São circunstancias que estes ultimos não escolheram, são moralmente arbitrarias no caso do eleitorado. No caso dos representantes, da classe política, tem-se a grave persistência nas circunstâncias de risco moral com respeito ao situacionismo/oposicionismo ainda que não ao eixo direita/esquerda e isto é o que é mais preocupante.
Com o recente veto do STF ao financiamento privado (empresarial) de campanhas eleitorais tais riscos tendem a se magnificar dado que o comportamento fisiologico e situacionista (na forma da patronagem, o acesso a benesses estatais como contrapartida ao eleitor) é o efeito colateral mais previsível e provável a ser acarretado. Dado que o restante do sistema eleitoral não foi modificado (sobretudo porque o mesmo STF vetou o fim das coligações), os politicos continuam desprovidos de quem os fiscalize efetivamente e sobre eles exerça pressão; mesmo suprimindo-se a sistemática influência dos grupos de interesse financiadores eleitorais a que se atribui a baixa autenticidade da representação ainda não se tem panorama seguro do que virá a ser o comportamento esperado dos legisladores nas tres esferas de governo.
Há uma década, em meio à crise do chamado "mensalão" (que redundou na Ação Penal 470) o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB)*, verdadeiro e tradicional mestre em matéria de combinação retórica de comportamento ideológico com fisiologismo, fez uma "profecia" sobre isto o que aconteceria, por exemplo, com o PSOL – então o mais “jovem” dos partidos políticos existentes. Aludindo aos vícios e falhas do sistema político-partidário o legislador apontava que o que ocorreu a este partido é algo que pode ocorrer com qualquer outra legenda que se proponha a comportar-se ideologicamente dentro dum sistema com tais caracteristicas e determinantes.
Hoje como se sabe, o PSOL, embora seja ideológico (não fisiológico, ao menos a nível federal) e se declare "independente" nas sucessivas legislaturas, tem assumido ativamente os riscos morais do "governismo" como se nota pelo tom adotado na campanha presidencial liderada por Luciana Genro e pelas recentes peças publicitarias de TV.
Tem-se aqui um case curioso de como uma legenda pode se comportar ideológicamente e não fisiológicamente defendendo (informalmente) as posições situacionistas, o que oferece a contraprova das assertivas correntes. Contudo, a sobreposição de assertivas nem sempre ocorre na prática ou conduz aos resultados imaginados – mesmo que o PSOL não seja “de direita” isto não o desqualifica para “ser oposição” ainda que o comportamento observado do mesmo se assemelhe ligeiramente ao oposto deste posicionamento.
O corolário de que a democracia se acha sob risco de extinção, por ausência de partidos de direita e de partidos de oposição, é falsa mesmo verificando-se comportamentos de deliberada exposição a riscos morais, artificiais ou não, dos seus agentes representativos. Os antecedentes desta conclusão por seu turno são bastante sinuosos e difíceis de sustentar lógica e factualmente. Em resumo, pode-se afirmar que existem partidos de direita e existem partidos de oposição. Mas estes não operam ou funcionam segundo a expectativa que deles se nutre, e isto decorre das características do nosso sistema político, o chamado Presidencialismo de Coalizão. Sem enunciar este contexto e seus contornos o problema fica mal enunciado e não pode gerar desdobramentos úteis e hábeis.
Ainda com respeito à previsão de Jefferson a mesma também se aplica ao Partido Novo e à Rede Sustentabilidade, bem como às demais legendas que estão prestes a se juntar às 33 já formalizadas?
Rio de Janeiro/RJ, 24-IX-2015.
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* Por José Roberto Bonifácio, Sociólogo (UFES) e Cientista Político (IUPERJ).
*Jô Soares entrevista Roberto Jefferson sobre as denúncias do Mensalão, programa exibido em 05/07/2005. Disponivel em: https://www.youtube.com/watch? v=mq81SD-O4TU
ResponderExcluirJoice Hasselmann e Marco Villa sobre Partido Novo
https://www.youtube.com/watch?v=2KxZKa3clOg
Presidente do Partido Novo dá uma surra intelectual no jornalista esquerdista Mario Sergio Conti da Globo News
ResponderExcluirhttps://www.youtube.com/watch?v=FFGbHl95MGE