Por
Anselmo Heidrich
Ontem tive um
tempinho e fui buscar um estojo para o tablet
do meu filho que, milagrosamente, só tem um pequeno risco na tela. Enfim, eu
encontrei o modelo certo e já aproveitei para ver se tinha uma capa para meu
celular, um Xiaomi. Um dos atendentes, típico adolescente integrado à
tecnologia me dizia encantado que este celular (que eu comprei baratinho) iria
revolucionar o mercado, que acabara de lançar um modelo com 90% das funções na
tela (achei que já era comum) etc. e etc. Eu confesso que me irrito com
celulares, apesar de utilizá-los e muito. É que gosto tanto de máquinas de
escrever que não me habituo a substituir um notebook,
que bem ou mal lembra uma por uma coisinha incômoda que tem que se digitar
quase que exclusivamente com polegares. Não faz sentido para mim, parece mais
uma involução.
Como não me
integrava e já que estava ali comentei sobre um de meus sonhos de consumo, que
era ter um celular da Caterpillar. E o sujeito, com cara de quem perdeu o ônibus
me disse que nunca ouviu falar. O outro funcionário da lojinha, mais antenado
reagiu positivamente “é para trabalho pesado, né?” Eu disse sim, se poderia
usá-lo próximo a fornos industriais ou no gelo e o primeiro, o “techboy” ficou
mais perdido ainda. Daí eu disse, “Caterpillar sabe? Aquela marca de trator”. Piorou...
E para facilitar eu ainda disse, “eu tenho umas botas dela”. Mas não dava,
quanto mais eu tentava situá-lo, mais perdido ficava o garoto. Daí desisti e
consenti que o problema desses celulares é que são muito básicos, mas por isso
que duram. É... Parece que não se pode ter os dois mundos. Mas saí dali com uma
sensação de que não consegui me comunicar ao falar de celulares como nos comunicamos com celulares. Estranho...
Hoje fui fazer
exames de rotina que estava em falta, sangue, tomo e a ressonância de cabeça e
pescoço. Ao entrar na sala de espera, uma senhora me olhou e conversamos. Percebi
claramente que ela estava tensa, seu neto de apenas 5 anos tinha um tumor. Embora,
já tivesse tirado o primeiro, este não fora tratado e agora tinha uma recidiva.
Contei resumida e rapidamente minha história, que costuma inspirar alguma
esperança, mas ela me impactou falando da criança. Disse que ele iria fazer um
transplante de medula, mas por alguma razão (exames, talvez ou vaga, não sei) não
conseguiu ir para São Paulo, mas indicaram Porto Alegre. Quando lhe disse que
havia um bom centro de transplantes lá, ela se alegrou e atribuiu à intervenção
divina, que “não era a hora de fazer em São Paulo, que então foi por isso”. Quanto
mais ela falava, mais aturdido eu ficava, mas nada se comparou quando vi o
garoto, um garotão de cinco anos na maca, só um pouquinho mais velho que meu
filho, coberto e carequinha. Aquilo apertou meu estômago e fiquei muito mal
mesmo. Querendo ser sedado logo.
O que eu diria a
ela. Nada. Por vezes, o nada é a melhor resposta. Apenas me restava o silêncio
ao ouvir suas palavras fazendo meneios com a cabeça, como que concordando e
para que se sentisse segura. Quero crer que tenha funcionado, quero crer que o câncer
na criança contrariando todas as tendências seja atrasado. Quero crer, mas não atribuo
isto a nenhum outro fator ou entidade que algo além de minha ignorância. A única
coisa que sei é que se vamos deixar esta festa e partir, temos que estar calçados
com nossas botas. E espero que minhas poucas palavras àquela senhora tenham lhe
dado a mesma sensação de segurança que minhas Caterpillar me trazem ao
calçá-las.
Se estes
mundinhos que se chocam no cotidiano, entre a geração high-tech e dos analfabetos digitais em que me incluo, dos crentes
e dos céticos como eu falassem menos, menos conflitos surgiriam com certeza, mas
igualmente menos chances de se aprender alguma coisa. Naquele momento que vi o
garoto passar desacordado na maca pelo corredor, eu vi na porta pelo que se
vale a pena lutar e viver.
A avó se
levantou e me desejou muita sorte, mas fiquei mesmo foi com o desejo de ter um milésimo
de sua força. Eu desejo mesmo que ela consiga surfar na conjunção de acasos e
forças que se debatem nossos mundinhos e compõem o universo.
Boa noite,
a.h
Mesmo com seus dentes, Mestiço não conseguiu estripar o couro de minhas Caterpillar.
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