quarta-feira, outubro 15, 2014

Onde o Brasil dá certo - 01



REVOLUÇÃO NO CAMPO
Por Ronaldo Ribeiro Fotos de Izan Petterle 

O piloto Índio do Brasil (sim, é esse seu nome de batismo) é um sobrevivente. Aviador tarimbado de garimpos e fazendas na inquieta fronteira do Mato Grosso com a Bolívia, ele já saiu ileso de vários pousos forçados em pastos e estradas, mas um grave acidente de carro deixou-o manco, com uma defasagem de 7 centímetros na perna direita. Como eu nunca fui muito amigo de vôos em aviões pequenos, suspirei aliviado quando Índio aterrissou suavemente seu monomotor Regente L-42 numa pista de terra a 2 quilômetros do centro de Sapezal. Havia sido um passeio revelador. Em meia hora no ar, entendemos mais sobre a região do que em dois dias anteriores no chão - de onde confronta-se com uma monotonia cênica irritante, uma topografia tão plana que permite à vista perder-se no horizonte, quilômetros além, sem uma única referência que não seja o tapete baixo e uniforme das lavouras. Do alto, porém, Sapezal é simétrica, atraente: um tabuleiro de xadrez onde avizinham-se o ocre da soja madura, o verde-claro do milho novo e o tom escuro do algodão entrecortado por longas estradinhas rurais, as chamadas "linhas". Plantações e mais plantações, verde e mais verde, dinheiro e mais dinheiro. 

A cidadezinha, que completa meros dez anos, é um fenômeno: inteiramente planejada, tem educação e saúde pública de alta qualidade, saneamento básico e água tratada em todas as casas, rede de telefonia com cabos de fibra óptica e programas sociais como a distribuição de leite de soja para os moradores. Já está entre as dez maiores arrecadadoras de impostos do estado e atingiu a incrível renda per capita de 25 mil dólares - mais de oito vezes a média nacional -, fruto de negócios que movimentam centenas de milhões de reais por ano. O megaprodutor Fernando Maggi lembra-se bem do dia, anos atrás, em que enviou pela internet para a Bolsa de Produtos Agrícolas de Chicago uma foto aérea de 42 colheitadeiras novas em ação, alinhadas numa lavoura de soja, um verdadeiro exército de produtividade. A bolsa de Chicago é o termômetro do mercado mundial de grãos. Segundo ele, a imagem serviu para balançar as cotações. "Naquela tarde, eles souberam onde fica o Mato Grosso", diverte-se ele. 

Os vastos planaltos que se abrem ao redor de municípios como Sapezal, Campo Novo do Parecis, Sorriso e Lucas do Rio Verde abrigam hoje as maiores áreas cultivadas contínuas de soja do planeta. Com tecnologia de ponta e sementes especiais, e aproveitando-se das terras planas e das chuvas regulares, imigrantes sulistas criaram um modelo de agricultura que, em 20 anos, garante ao Mato Grosso mais de 10 milhões de toneladas de soja por safra - apesar de uma quebra em 2004. No total, o país colhe mais de 50 milhões, menos apenas do que os Estados Unidos. Mas, enquanto as áreas agrícolas americanas estão todas ocupadas, no Brasil restam milhões de hectares com condições de cultivo, que poderão transformar o cerrado numa vasta lavoura, e até irromper na floresta, numa tendência que vem deixando os ambientalistas de cabelos brancos - ao expandir fronteiras no campo, o Mato Grosso liderou o ranking do desmatamento da Amazônia Legal em 2003. 

Sapezal é o exemplo mais cintilante dessa revolução: uma cidade que brotou do nada, longe de tudo, fruto da obstinação de um punhado de pioneiros que desbravaram a chapada dos Parecis no fim dos anos 1970. Naquela época, a região ficava a uma distância imensa de qualquer indício de civilização - o banco ou o supermercado mais próximo estavam em Tangará da Serra, a 300 quilômetros ou um dia de viagem dali. O destino só começou a mudar em 1984, com a chegada do gaúcho André Maggi, um imigrante com determinação e recursos suficientes para idealizar uma cidade que pudesse favorecer a presença de novos empreendedores. Toda a área urbana foi traçada sobre parte do que antes era uma fazenda de André. Por volta de 1987, ele loteou terras, abriu ruas, plantou árvores e construiu a escola, a usina hidrelétrica, a delegacia, o hospital, a praça central. 

Custou caro, quase 10 milhões de dólares, mas foi um bom negócio. A usina até hoje vende energia para o município e os Maggi consolidaram-se como a potência do agrobusiness local - o valor investido na época equivale a um quadragésimo do faturamento do grupo em 2003. Mais: ainda hoje, entrar e sair de Sapezal tem sido um drama, com o caminho mais curto para os portos de Santos e de Paranaguá, a MT-235, que corta ao meio a terra dos índios parecis, ora sendo assolado por atoleiros dignos da Transamazônica, ora sendo bloqueado por nuvens sufocantes de poeira. A única via de asfalto segue em outra direção, para Rondônia e o rio Madeira, em Porto Velho, onde os Maggi projetaram uma hidrovia que culmina em Belém e no Atlântico. A criação desse atalho exclusivo para os mercados do Pacífico foi a grande cartada de Blairo Maggi, o maior plantador individual de soja do mundo - só em Sapezal, tem 40 mil hectares - e governador, pelo PPS, de um estado que administra com pulso firme de empresário. Uma cidade tão nova tem lá suas curiosidades, como o fato de os únicos autênticos cidadãos sapezalenses serem as crianças nascidas após 19 de setembro de 1994, a data oficial da emancipação. Os infortúnios vividos por seus pais nos primeiros tempos ficaram apenas no papel, literalmente, como assunto das aulas na exemplar escola municipal de primeiro grau. Os 2,4 mil estudantes contam com cartão magnético para controle de freqüência, revezam-se em salas temáticas para cada disciplina e lidam com questões sociais e ambientais (como tratamento de lixo e agricultura orgânica) em seus trabalhos. Em outro turno, dispõem de atividades como dança, artes marciais e informática. "Há um mundo de oportunidades aqui, mas precisamos de mão-de-obra qualificada, formar uma nova geração", diz a secretária de Educação, Ilma Grisoste Barbosa. 

Os bons ventos da fortuna fácil, entretanto, começam a atrair à cidade sonhadores sem nenhuma especialização, uma gente capaz de fantasiar riqueza tanto num garimpo de ouro quanto na construção civil das metrópoles. Como resultado, pequenos guetos de pobreza já pipocam aqui e ali, e na ensolarada manhã de março em que visitei essas áreas o Diário de Sapezal publicava uma página inteira com as ocorrências policiais do último fim de semana, entre elas duas brigas de faca e um bar destruído por um bêbado, inconformado com a derrota numa partida de bilhar. "A cidade rapidamente vai deixando de ser uma bolha privada de prosperidade e paz. A cada ano integra-se mais ao estado, e isso tem seus aspectos bons e ruins", analisa o administrador Gustavo Petterle, ex-secretário de Saúde. 

A odisséia das cidades sojicultoras parece renovar a vocação do Mato Grosso como um território de destemidos, onde a conquista do sucesso sempre esteve acompanhada de desafios. Relatos de árduas jornadas pela região destacam o então coronel Cândido Mariano Rondon, que pisou em território pareci em 1907, fincando postes para uma linha de telégrafos que ligaria Cuiabá ao Amazonas. O sertanista escapou por pouco de morrer por uma flecha envenenada dos nambiquaras, então selvagens, mas não desistiu. Na margem esquerda do rio Papagaio, a 100 quilômetros do ponto onde hoje está Sapezal, Rondon inaugurou, um ano depois, uma subestação telegráfica na aldeia de Utiariti, que já era referência entre os raros exploradores por causa de uma espetacular cachoeira nos arredores, com 92 metros de queda. 

Eu ouço essas histórias sentado sob uma das duas centenárias mangueiras plantadas pelo próprio Rondon, que garantem sombra para as poucas famílias que vivem agora na aldeia. A calmaria contrasta com tempos de outrora, nos anos 1940, quando seringais geraram prosperidade e outros grupos indígenas, como os manokis, aglutinaram-se na área, ao redor de uma missão jesuítica que persistiu até 1985. "Foi um período de amparo e organização para a agricultura. Com a chegada dos sulistas, muitas tribos, receosas, passaram a viver ali", diz Nivaldo Bertotto, historiador autodidata de Sapezal. "A missão acabou para que todos voltassem para suas terras." 

Resguardados em suas reservas, parecis e nambiquaras mantêm roças esparsas de subsistência, caçam e pescam ocasionalmente e contam com uma bolsa em dinheiro, paga pela prefeitura. Essa rotina de parcos recursos e longas horas de ócio alimenta um dilema antropológico. Os índios espiam além de seu quintal e se assombram com a bonança dos vizinhos agricultores, donos de colheitadeiras de última geração (com CD player, sistema GPS, ar-condicionado e água gelada), camionetes importadas, internet via satélite e invejáveis moradias (a nova sede da fazenda de um deles, com projeto arquitetônico assinado pelo próprio, é uma mansão em estilo rústico com 11 suítes e uma cachoeira artificial). E, é óbvio, querem o mesmo para si - principalmente porque, no papel, são os maiores donos de terra do município. "Os parecis têm 300 anos de contato, estão totalmente aculturados. E são nativos desse território de tantas riquezas. Então, é natural que queiram ter o melhor dos dois mundos", diz Margarete Valentin, coordenadora de um programa de educação indígena. Alguns índios, com equipamentos emprestados, deram o primeiro passo: na aldeia Três Jacu, consta que 112 hectares já estão abertos com soja. 

Em tese, a perspectiva é preocupante. A soja tem-se revelado viável economicamente enquanto monocultura extensiva, com cultivo mecanizado e largo uso de defensivos agrícolas - proibidos em terras indígenas. O uso das reservas para lavouras comerciais poria em risco o que restou da vegetação original, um cerrado com matas altas na transição com a floresta Amazônica, e ameaçaria de vez grandes rios como o Arinos e o Juruena, formadores da bacia Amazônica. "Uma vez, ouvi um índio dizer que eles não podem pagar sozinhos o preço pela preservação da natureza. E que não é nosso direito obrigá-los a viver a sociedade que nós idealizamos, em termos ambientais e sociais, mas que nunca conseguimos realizar", retrata a educadora Helen Cristina de Souza, da Universidade do Mato Grosso. "Me assusta a terra indígena cheia de soja ou algodão, mas também me assusta a deslealdade do atual modelo." 

É uma questão emblemática, que Sapezal vai ter de resolver com a mesma agilidade que tem sido o motor da sua história. Enquanto esteve lá, André Maggi tratou tudo e todos com indistinto paternalismo, mas, depois da sua morte, em 2001, o município percebeu que teria de seguir adiante com as próprias pernas. Se deseja fazer jus a seu potencial, vai ter de conciliar desenvolvimento com equilíbrio social (evitando a demasiada concentração de renda) e ambiental (às vezes fica difícil respirar ali, por causa do fedor dos agrotóxicos lançados por aviões agrícolas nos arredores). "A cidade cresceu em dez anos o que outras no Mato Grosso não conseguiram em 100, 200 anos. Mas quem pode garantir se a agricultura é mesmo o futuro?", admite o prefeito, Aldir Schneider, também plantador de soja. 

Sapezal é uma cidade em formação, com a poeira vermelha do cerrado ainda se assentando sobre suas 40 ruas - quase todas batizadas com nomes de peixe, curiosamente. O milagre das súbitas conquistas está nas lavouras sem-fim, sobretudo nas que prosperam as vagens viçosas de soja. Fenômeno moderno, dinâmico, Sapezal paira à mercê de mercados internacionais, negócios globalizantes e demandas alimentares - expressões que soam exóticas em meio à lonjura e ao isolamento da chapada dos Parecis. Se o grãozinho permanecer em alta conta, a cidade talvez se projete como uma sucursal da Suíça, uma bolha de Primeiro Mundo no coração da América do Sul. Mas, se em 20 ou 30 anos novos ciclos de riqueza apontarem em direção contrária, há o risco de se tornar uma Serra Pelada, um Eldorado esquecido no meio do nada, como tantas vezes se viu no Brasil.

[http://nationalgeographic.abril.com.br/edicoes/0405/cep/index.html (link quebrado).]


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