quinta-feira, fevereiro 10, 2011

99 não é 100


Acabo de assistir Wasteland (Lixo Estraordinário), documentário de Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley sobre a vida dos catadores de material reciclável no maior aterro de lixo do mundo, Jardim Gramacho no Rio de Janeiro. Quando minha mulher me convidou para assisti-lo pensei “lá vai, mais um filme com olhar brasileiro terceiro-mundista sobre a vida dos ‘excluídos’ pela sociedade consumista insensível...” – Às vezes pode nos surpreender, ela me disse e estava certa. Não é um filme sobre a necessidade da reciclagem e os limites do crescimento econômico como estamos acostumados a ver idéias divulgadas por aí, é muito mais do que isto, é um documentário sobre a esperança e, principalmente, como o associativismo civil pode suplantar as maiores limitações que somos acometidos quando negamos a capacidade criativa de nossa vontade. Em determinado momento, em cima dos andaimes do estúdio, o artista plástico Vik Muniz, quem trabalhou com os coletadores de material no lixão diz, se não me falha a memória, que se sua família também tivesse sofrido algum percalço e ele não conseguisse ascender de sua condição de classe média baixa brasileira indo parar ali, não desperdiçaria a chance de participar de um projeto desses para fazer algo diferente, mesmo que depois voltasse a sua condição anterior. E é bem isto, os participantes conseguiram realizar uma obra coletiva fantástica e vender um de seus quadros em um leilão em Londres auferindo R$ 100.000,00 revertidos em negócios como alimentos, escola, biblioteca e sua associação profissional.
Este tipo de empreitada se distingue da tônica nacional atual, em que o estado subsidia indivíduos com bolsas que os estagnam. Se o resultado deste trabalho pode ser avaliado e compensado na forma de um valor de mercado, a dignidade obtida vai muito além. Trata-se de um forte retroalimentador da prosperidade individual e, consequentemente, social. Percebe-se, claramente, quão enganosa é a premissa de que a “obra social” tem que ser compulsória, sem espaço para a vontade e livre arbítrio anulando o indivíduo. No outro extremo, de quem confunde individualismo com o mais nefasto egoísmo, o documentário passa a idéia de responsabilidade, de que não é possível que todos arqueemos pelo descaso com nossos subprodutos indesejáveis, de que algo tem que ser feito para mitigar externalidades negativas como a produção de lixo e não tratamento com material que é reciclável. Esta é uma deturpação liberal, que confunde a ação social com ausência de dever para com outros indivíduos. Liberalismo clássico não é isto. Óbvio que se eu produzo rejeitos além de uma cota tolerável de assimilação pelo sistema (social, ambiental) tenho que pagar por isto. Analogamente, se todos já pagamos proporcionalmente pelo maior consumo energético, por que então não se deveria fazer o mesmo com a produção de lixo? Não é porque discordamos de utopias totalitárias travestidas de preocupação ambiental que vamos entender legítimas preocupações ambientais como “perfumaria”. Per Bylund[1] apud Libertatum, p.ex., critica o sistema de coleta reciclável implantado na Suécia:

Os contadores do governo também tomam vantagem dos cortes de custos que eles tem sido capazes de perceber ao centralizar o sistema de coleta de lixo. Estes “cortes”, contudo, são na maioria cortes no serviço, enquanto as taxas para os consumidores têm sido aumentadas. Um problema recente com os centros de coleta de lixo é que os recipientes não são esvaziados muito freqüentemente (um exemplo típico de como os governos procuram economizar) e portanto permanecem cheios o que significa que o lixo das pessoas empilha-se próximo aos recipientes sobre-lotados enquanto os prestadores de serviço contratados pelo governo sentam ociosos: eles são pagos para esvaziar os recipientes em dias programados e não para recolher o lixo amontoado junto a estes recipientes. O resultado? Doenças e ratos. Os jornais têm noticiado sobre uma invasão de ratos em Estocolmo e em outras cidades suecas nos anos recentes.
Se considerarmos os custos em termos monetários, em termos de tempo desperdiçado, e em termos do aumento de emissão dos automóveis, isto dificilmente será ambientalmente amigável. Junte-se a isto o descontentamento e o aumento do risco de doenças, e a reciclagem sueca se mostrará no mínimo tão desastrosa quanto qualquer outro esquema estatal.
Isto deveria ser previsto, já que o esquema é tão autoritário no seu estilo, estrutura e gestão. Ele pode ser mais “high-tech” e avançado do que os sistemas soviéticos existentes até então, mas ainda é um sistema fundado no poder de império antes do que nas escolhas voluntárias baseadas no interesse e nos incentivos. (...)
Em primeiro lugar, não há nada de “estilo soviético” nisto. Basta um pouco de interesse para saber que na extinta URSS, os índices de poluição se encontravam entre os maiores do mundo e não se tem notícia de um programa de reciclagem adotado pelo falido império. Em segundo, se há problemas no centralismo, na burocracia e falta de orientação pelo lucro de iniciativas privadas, isto não depõe contra o princípio de reciclar e evitar dano a outrem. Por outro lado, a eliminação da prática de reciclagem e tratamento adequado do lixo não vai impedir que outros custos sociais esquecidos pelo autor, resultantes da transmissão de doenças devido ao acúmulo de material, dispêndio de energia devido ao transporte e tempo gasto ocorra. Eles simplesmente serão transferidos para outros profissionais empenhados em executar a tarefa. O custo em si não deixa de existir. Como bom liberal, Bylund deveria saber que não existe almoço grátis. Ainda, se o autor reclama dos cortes no orçamento que levam ao empilhamento do lixo, a solução estaria então em não reciclar ou permitir a participação de concorrentes ao setor público que monopoliza a atividade? Ele faz uma crítica supostamente liberal à tarefa estatal, mas não propõe solução alguma, apenas parece desejar seu fim. Ou seja, o autor não tem foco no que critica, apenas critica porque a idéia partiu de um governo e é abarcada pelo estado. Anarquismo infantil... Se não há espontaneidade na ação social que deveria zelar pela urbanidade vai se esperar gerar uma “consciência social” enquanto a saúde pública se deteriora ainda mais? Que se critique a execução e desempenho governamentais então, mas a rejeição do princípio e zelo com esta poluição é como jogar o bebê fora junto com a água suja do banho. Não se pode esperar que todos concordem mesmo, pois envolve trabalho, esforço e sacrifício, como disse um velho catador sobre a necessidade do envolvimento de todos “porque 99 não é 100”. E se um for responsável por atacar meu direito ao saneamento, este tem que ser acionado. Não quer participar? É seu direito, assim como é o meu de processar quem me prejudica. A chave é que se pague pelo que faz ao atingir algum inocente pela própria porquice.
Se os radicais não gostam de uma idéia que traz conforto a maioria é porque se trata de uma boa idéia.
...


[1] The government bookkeepers also take advantage of the cost cuts they have been able to realize through centralizing the garbage collection system. These "cuts," however, are mostly cuts in service, whereas rates for consumers have been increased. A recent problem with the garbage-collection centers is that the containers aren't emptied very often (a typical example of government "savings") and thus remain full, which means that people's garbage piles up next to the overflowing containers while the government contractors sit idle: they are only paid to empty the containers on schedule, not to pick up the trash sitting next to these containers. The result? Disease and rats. Newspapers have been reporting on a "rat invasion" in Stockholm and in other Swedish cities in recent years.
If we consider the costs in monetary terms, in terms of wasted time, and in terms of increased emissions from automobiles, this is hardly environmentally friendly. Adding the annoyance and the increased risk for disease, Swedish recycling is at least as disastrous as any other government scheme.
This should be expected, since the system is so authoritarian in style, structure, and management. It might be more "high-tech" and advanced than the Soviet systems ever were, but it is still a system founded on command rather than voluntary choice based on interest or incentive. (...)
[http://mises.org/daily/2855]

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