quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Entre o nada e o lugar nenhum


Certos textos são perfeitos para uma época. Pobreza, desigualdade e servidão | OrdemLivre.org é um desses. Se eu fosse escolher uma peça de marketing liberal para combater a visão socialista e divulgá-lo em folders espalhados pela cidade, especialmente nos campus universitários e centros empresariais seria este texto de Ivan Bolis Dauchas. O artigo do site Ordem Livre acerta em apontar a pobreza brasileira como um de nossos grandes problemas. Mas, eu não vejo como poderia ser diferente, tanto para liberais quanto socialistas. Dizer que programas de distribuição de renda como o Bolsa Família têm sua “matriz teórica (...) contida nas idéias de um dos papas do (neo)liberalismo, o economista norte-americanao Milton Friedman” sem explicar como isto seria diferente de um programa socialista não serve para nada na defesa do liberalismo como forma de superação do estatismo e clientelismo tradicional. Nas palavras do autor:


Em seu livro, Capitalismo e Liberdade, Friedman discute a questão da desigualdade de renda e riqueza no capitalismo. Friedman argumenta que para ele — ferrenho defensor do liberalismo — é difícil encontrar argumentos éticos favoráveis a uma redistribuição da renda. Todavia, se essa política for implementada, que funcione como uma espécie de imposto de renda negativo. Ou seja, pessoas muitos pobres, em vez de pagar imposto de renda, recebem um subsídio do governo. Quanto menor a renda, maior a transferência a que a pessoa terá direito. Segundo o autor, essa política respeita o direito de escolha do consumidor. Em vez de o governo oferecer bens ou serviços gratuitamente, é melhor que a pessoa receba uma ajuda em espécie e escolha livremente qual a melhor forma de alocar esse recurso.

Acho que o problema visto de uma perspectiva liberal e assumindo-a como superior às visões socialistas, não é uma mera questão de livre escolha ou alocação de recursos, mas de como obtê-lo e de sustentá-lo. Podemos distribuir recursos para pobres e apostar que vão gastar em gêneros básicos de subsistência e, a partir de então acreditar que canalizarão esforços para ascenderem socialmente como indivíduos dotados de autonomia financeira. Esta seria a “porta de saída” da qual fala o autor. Mas, sinceramente, eu não acho que funcione assim. O complemento de renda (que é como funciona na maioria dos casos) se torna para essas pessoas um objetivo e não um meio. Como posso dizer isto? Da mesma forma empírica, intuitiva e gratuitamente baseada com que muitos apenas apostam que seria diferente. Dizer que:

Suponhamos agora uma pessoa muito pobre e sem dentes. Tão importante quanto os alimentos, para essa pessoa, seria uma dentadura. Nesse caso, uma ajuda em dinheiro é mais eficiente que um cupom de alimentação. Quando o governo dá dinheiro no lugar de cupons, permite que a pessoa escolha a melhor maneira de alocar sua renda.

Pressupõe que os indivíduos tratarão, em primeiro lugar, da saúde. No caso da dentição, o que ocorre é que tais recursos são claramente insuficientes para “trocar uma dentadura” e mais do que suficientes para comprar bebidas alcoólicas. Sei que dirão que isto é preconceito meu, que alguns ainda dirão que não posso tomar como exemplo o que eu próprio faria... Tudo isto é verdade, mas reitero, minha suposição tem tanta validade quanto apostar no melhor se não temos como averiguar como a população beneficiada realmente aloca seus recursos.
Outro ponto polêmico nesta análise econômica é quando sugere conseqüências sociológicas de modo simplista. Asseverar taxativamente que a pobreza gera “instabilidade social”, mais violência, criminalidade etc. não é verdadeiro. Há países como a Índia, em regiões de grande pobreza e desigualdade que não necessariamente são mais violentos que sociedades urbanas latino-americanas com maiores oportunidades econômicas. A criminalidade é cultural, se baseia em costumes e modo de ver como se desenvolver. Não dá para afirmar que ganhar menos vá me condicionar a roubar se estou resignado a ganhar menos e subsistir como já subsisti até então. Se acreditarmos nesta lenda, então também podemos afirmar que sociedades mais pobres e desiguais do passado foram mais violentas e plenas de criminalidade do que as atuais, o que é exatamente o contrário do que se diz por aí, que a violência e o crime têm aumentado.
Se for preconceito de minha parte acreditar que tais proventos geram degeneração social devido ao mau uso dos recursos, o que dizer então de que pessoas com baixa instrução são “mais facilmente manipuláveis por maus representantes políticos”? Isto é que é preconceito ao crer que pobres não têm poder de escolha por governantes ou representantes que sejam de seu interesse quando se sabe que o voto é secreto. É difícil assumirmos que pobres (ou ricos ou remediados) elegem corruptos, não por ignorarem a corrupção, mas por fazerem pouco caso da mesma. Com recursos distribuídos para seu uso, daí mesmo que a manipulação política se tornará irresistível por esses representantes com um excelente instrumento econômico de obtenção de votos. As obras de infra-estrutura e geração de empregos, que podem também ser criadas pelo estado e não somente pela iniciativa privada ficarão de lado só porque não foram substituídas pelo poder de escolha dos beneficiados do Bolsa Família? E ainda perdemos moralmente, pois com o atual “apagão de mão de obra qualificada”, a escola que poderia ser uma alternativa a isto é reforçada como inútil, pois seus possíveis frutos de longo prazo são substituídos por benefícios imediatos advindos da distribuição de renda. Troca-se a autonomia individual futura por uma clara dependência de curto prazo em nome da livre escolha. Livre para quem? Para quem subsidia a farra que não é.
Pergunto-me ao ler este artigo se alguns de nossos professores universitários têm a mínima noção de certos custos:

A pobreza é indesejável porque é injusta, economicamente ineficiente e politicamente temerária. É injusto que uma pessoa não tenha condições para custear minimamente sua alimentação, moradia, serviços de saúde e estudo. Quando uma pessoa é privada de suas necessidades elementares, não pode se desenvolver plenamente. A pobreza faz com que os recursos humanos de uma nação sejam desperdiçados, logo gera ineficiência econômica.

O autor sabe quanto custa uma mensalidade de ensino médio em uma escola privada? Como ele pode acreditar que o Bolsa Família que pode atingir, no máximo, R$ 200,00 dê para isto? Feijão, arroz, legumes e carne, sim, mas “serviços de saúde e estudo”? Este público é o que obtém remédios gratuitamente em postos de saúde e matricula seus filhos em escolas públicas, as mesmas escolas que distribuem de canetas, lápis e cadernos até livros caros subsidiados, que acabam por serem trocados continuamente devido a licitações vencidas por fornecedores de produtos baratos e de baixa qualidade, que acabam com livros riscados e rasgados porque são de graça, porque não têm valor para quem não gastou nada em consegui-los. Este tipo de distributivismo sustenta, de modo perene, empresas ligadas a políticos em uma máquina clientelista e corrupta. Gerar empregos pela iniciativa privada e gerar outros com incentivo público como segunda opção também é que deveria ser a meta. São muito mais funcionais e justos para quem paga impostos do que esta farsa do subsídio e ajuda estatal ancorados na desculpa esfarrapada de afirmar a livre escolha do consumo. Que se opte pelo que vai gastar, mas com recursos próprios.
O cerne do argumento do autor está em dois pontos que julga positivos:

Esse é o primeiro aspecto positivo dos programas de complementação de renda. Ao conceder uma ajuda em espécie, o governo respeita a soberania do consumidor. Ninguém melhor que o próprio consumidor sabe quais suas reais necessidades. Para ilustrar essa situação, imaginemos um caso bem simples, porém esclarecedor. Suponha que o governo ajude famílias pobres distribuindo cupons de alimentação que as pessoas trocam por comida em supermercados.
O segundo aspecto positivo dos programas de complementação de renda está na focalização. Esses programas são eficientes porque não são universais (oferecidos a todos), eles enfocam os mais pobres. Por exemplo, suponhamos que, em vez de complementar renda, o governo escolha subsidiar a produção de alguns alimentos, tornando-os mais baratos. Essa política é menos eficiente porque é universal. Tanto pobres como ricos seriam favorecidos pelos preços mais baixos dos alimentos.

Alguém que me lê já deve ter se deparado com a situação de ter dado esmola e ficado com uma pulga atrás da orelha ao pensar no que o pedinte foi gastar, se com comida, bebida ou crack. Pois bem, penso o mesmo sobre estes subsídios, como eles serão usados? Por que a distribuição de vales para alimentação seria menos funcional do que dinheiro para compra de algo que entendo imoral com recursos alheios?
Há também nestes pontos, especialmente o segundo, um sofisma, quando diz que os subsídios aos alimentos seriam piores porque universais. Isto só se o subsídio fosse geral, pois se os vales de troca por alimentos forem dados só aos mais pobres não seria universal, mas focado. Se surgir um mercado negro de vales, como acontece com vales transporte por quem os obtêm e não precisa se percebe sim que o melhor é a suplementação de renda para que o beneficiado possa escolher comprar combustível então. Mas, nesse caso, o sujeito já tem um emprego, já possui renda, o que precisa é aumentá-la. Como o governo agiria melhor? Focando em vales transporte para quem paga caro ou aprimorando a economia como um todo ao reduzir tributos embutidos nesses mesmos combustíveis. A segunda opção melhoraria a situação econômica para todos e, os mais pobres em especial porque o baixo custo de produção em relação ao período anterior acabaria por gerar mais empregos. Parece-me lógico que tais subsídios mantêm uma situação de pobreza criando remendos ao invés de soluções e, sendo solução permanente apenas para o uso político de instrumentos econômicos por maus políticos que o autor ingenuamente acredita estar combatendo com o Bolsa Família.
No penúltimo parágrafo do texto se chama atenção para os possíveis (!) malefícios do programa se for duradouro. Ocorre que a cultura criada pelo subsídio só profissionaliza o clientelismo e perdura a corrupção política. Criar um instrumento que encaixa na opção política de não gerar empregos porque é “vício estatal” enquanto geramos outro vício pior, o da dependência é que perda moral e geração de indignidade humana. Não há sinais no horizonte temporal de que isto vá acabar. Muito pelo contrário, é um sistema que inaugura uma extensão política do estado de forma degenerativa, onde se ganha para não trabalhar. E o empreendedorismo é claramente desincentivado porque caro devido a tantas taxas que sustentam a mesma solução paliativa.
Depois de tudo que o artigo nos diz, concluir que o ideal é investir em educação é um clichê surrado quando esta educação foi perdida justamente porque outra desincentivou a busca por melhorias individuais. Na ponta do lápis, o que seria melhor, toda esta verba para se gastar com sei lá o que ou uma ampliação de escolas técnicas para formação de mão de obra a ser canalizada em empresas privadas e públicas? Achar que alguns reais a mais formarão cidadãos melhores com maior poder de escolha é não querer encarar a qualidade desse recurso, como é canalizado e como é gasto. Não dá para afirmar nada se não é feita uma avaliação nacional do benefício, tudo que temos é um rotundo chute e retórica assistencialista travestida de desenvolvimento econômico e social.
“Educação de qualidade” começa com a qualidade da formação do principal profissional desta saga, o professor, o resto é balela. O Bolsa Família apenas é o melhor programa porque não existe alternativa a altura. Entre o nada e o lugar nenhum, o mesmo de sempre é, pelo menos, algo. Nada mais do que isto.
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