sábado, março 23, 2013

Vestibular de Geografia/FUVEST 2005


THURSDAY, JUNE 02, 2005

Vestibular

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FUVEST 2005: um caso de estelionato pedagógico

por Anselmo Heidrich em 06 de dezembro de 2004 
Resumo: Um simples spam da net não deveria merecer maiores considerações, mas no Brasil foi utilizado numa questão de vestibular da maior universidade do país. 


Mantendo a tradição de comentar algumas provas vestibulares de geografia e a ensandecida sanha ideológica de seus formuladores[1], eis que me deparo logo na primeira questão do último vestibular da Fuvest, com esta “gracinha”:



O que o autor da questão acima quis imputar a todos os estudantes que passaram um ano ou mais queimando pestanas para entrar na USP foi algo como “os EUA vêem preconceituosamente o resto do mundo e só segundo seus interesses”. Em que pese o fato de que todos os povos apresentem um grau maior ou menor de etnocentrismo, é difícil crer que uma sociedade complexa, composta por mais de 280 milhões de habitantes, uma incrível variedade étnica e cultural, tenha para todo o seu conjunto uma visão tão limitada do resto do mundo. Isto ocorre com muito mais freqüência nas sociedades tribais[2], mas daí o ideário politicamente correto impediria de acatar com este tipo de comentário e crítica. Mas, não é de hoje que se aproveita qualquer ocasião para os professores universitários destilarem seu veneno antiamericanista.
Um simples spam da net não deveria merecer maiores considerações, mas qual não foi minha surpresa ao ser utilizado numa questão de vestibular da maior universidade do Brasil.
Comecemos pelo próprio mapa dos EUA onde estão cartografadas as áreas de Hollywood e Nova York tão somente. Se há um país conhecedor de seus próprios recursos naturais, este é o EUA. A visão que passa pela questão é que sua nação é formada por um bando de analfabetos funcionais que não conhece seu próprio território. É como se os 15% de analfabetos ou mais de 60% de analfabetos funcionais que há no Brasil estivessem lá.
Parece-me também que Hollywood é mais importante para cineastas brasileiros que vivem mendigando um Oscar de Melhor Filme Estrangeiro do que para os próprios americanos. A propósito, tem havido uma crescente onda de locações de filmes fora dos arredores desta cidade devido ao seu elevado custo.
O Canadá é visto como simples reserva de caça – já que no mapa só consta “cervos” -, o que é no mínimo hilário: já na década de 50, 35% do capital investido na mineração canadense, era de seu vizinho imediato ao sul; 65% na petroquímica; e, 70% nos transportes. Exceto se a composição do capital atual nas empresas canadense esteja direcionada, predominantemente, para pecuária ou clubes de caça, o spam erra grosseiramente quanto à visão que os EUA têm de seu vizinho setentrional. Faz tempo que os EUA se ocupam do Canadá e o desenvolvimento econômico deste, deve-se em grande parte a associação de interesses com aquele.
A Groenlândia é retratada como um imenso campo de “neve”, embora a ocorrência mais freqüente, sejam imensos inlandsisque, durante a Guerra Fria foram muito utilizados para sustentar postos de radar, centros de comunicação e bases aéreas dos EUA.[3] Ainda na Zona Polar Setentrional, encontrava-se outra base aérea e uma naval na Islândia e mais outros quatros centros de comunicações e radares na tundra canadense. O autor da questão não compreende, nem imagina qual é o aproveitamento que os EUA fazem desta região.
Ainda poderíamos citar a presença permanente de submarinos na periferia do Oceano Glacial Ártico, tropas e bases aéreas no Alaska, bem como o posicionamento de porta-aviões ao sul da Ilhas Aleutas apontados para a península russa de Kamchatka. Se isto não é um bom aproveitamento das geladas terras setentrionais do Hemisfério Ocidental, não sei o que pode ser. Esta limitada percepção decorre do não entendimento que uma área determinada do globo não apresenta um aproveitamento em si, tão somente, mas também como ponto de referência para outras áreas e situações mundiais. Especialmente, se levarmos em consideração que, no cenário da Guerra Fria, um possível conflito envolvendo EUA e URSS teria o Ártico como palco, mais que a Europa, devido a menor distância para os mísseis percorrerem. Apesar de hoje, este não ser o foco de maior tensão, cabe chamar a atenção para a presença da Coréia do Norte e China, sendo esta última aliada em determinados setores e opositora em outros.
Está certo que a geografia é uma grafia, mas a descrição é um primeiro passo para a análise. Se o que o autor de questões pretende é imputar um terceiro-mundismo e antiamericanismo estúpido, não se discutiria. No entanto, o vestibular pretende ser um processo seletivo que avaliaconhecimento. Sendo assim, alunos que estudaram a sério foram prejudicados e, igualmente, em país sério, isto daria margem para inúmeros processos.
Mas, demos um crédito ao “geógrafo” que deve ter feito a questão: em termos econômicos, o que se pode dizer da Groenlândia, além de entreposto pesqueiro importante? Uma importante reserva de petróleo no Ártico, inexplorada por enquanto devido ao alto custo, mas que será conveniente tão logo as reservas do Golfo Pérsico se mostrem inviáveis economicamente. Antes disso ainda, há as do Mar Cáspio, já consideradas as segundas mundiais e que são drenadas por oleoduto que atravessa a Turquia, uma alternativa aos dutos russos, construídos com apoio americano sob o “guarda-chuva” da OTAN. Mesmo assim, há “geógrafo uspiano” que acha que a visão americana é limitada...
O México é visto como um “Reino da Tequila”. Mas, “o que é isto companheiro?” Inveja pela aguardente mexicana ter maior reconhecimento nos EUA do que nossa cachaça? Ou pelo fato do México ter aumentado suas exportações em 300% desde seu ingresso no NAFTA em 1994? O que lhe deu, entre outros, a posição superior ao PIB brasileiro. Enquanto isto, nós fazemos acordos com benefícios desmedidos à China 
que, por sua vez, não cultua um tolo antiamericanismo em matéria econômica. Nossa política externa é tola o suficiente também para postergar as negociações da Alca, o que pode levar o Brasil a um isolamento econômico no continente e daí sim não obtermos vantagens comparativas mais interessantes.
Na Colômbia só há drogas? Não, mas não pode deixar de se dizer que este seja um problema mundial de forte tradição no país, cuja produção chega a 60% do total mundial. O presidente Uribe que o diga, empenhado que está junto com o governo americano por erradicar esta peste de seu país, no qual o principal grupo terrorista, as Farc já chegou a controlar 40% do território nacional com o financiamento do narcotráfico.
De grande centro processador da pasta de coca nos anos 90, a Colômbia passou a ser o maior produtor mundial em 1997. Além de cocaína, a Colômbia também se tornou o maior provedor de heroína para os EUA.[4] Esta não é, como diriam os comentadores da questão, uma “visão estereotipada”, mas realista. Bem mais realista que a brasileira que se negou a apoiar o Plano Colômbia, mantendo uma participação pífia no combate ao narcotráfico.[5]
Mais de 20% das exportações brasileiras no ano passado foram para os EUA.[6] Será só café? Creio que não. Além dos vários produtos exportados, o Brasil já conta com filias de empresas nacionais implantadas no território americano (Embraer, Gerdau) o que mostra a importância de se aproximar cada vez mais daquele mercado. E a recíproca é verdadeira, principalmente no tocante ao agronegócio, que tem atraído agricultores americanos para o Cerrado brasileiro com o objetivo de produzir a preços mais competitivos.
“Florestas”, por si só, no interior sul-americano não revela ignorância, mas perspicácia, uma vez que a biotecnologia tem um peso cada vez maior nesta aurora do século XXI. Hoje, pode-se dizer que 1/3 dos medicamentos têm sua origem na sintetização de compostos orgânicos provenientes de ecossistemas como a Amazônia. Quem será que está pesquisando e tirando proveito?[7] São “só” mais de 10.000 estrangeiros pesquisando na Amazônia, o que, diga-se de passagem, terá resultados espetaculares para o desenvolvimento científico mundial.
A África que tem mais de três vezes a extensão territorial dos EUA é retratada em apenas três pontos:
- O deserto com a “areia”, especificamente, no ponto onde se localiza a Líbia bem junto à Trípoli, sua capital. É de admirar que os americanos “só saibam disto”, pois foi o complexo residencial do terrorista e ditador Muamar Khadafi foi bombardeado por ordens de Ronald Reagan em 1986.[8]
- As florestas africanas na região do Congo ocultam freqüentes genocídios entre clãs, tribos e castas como ocorrido entre Tutsis e Hutus em 1994. O que isto tem a ver com os EUA? Talvez o autor da questão pudesse sugerir uma maior intervenção internacional pacificadora, tão ineficaz como as feitas pela ONU ou incisiva como as executadas pelos EUA. Mas, se tomando a segunda alternativa, não se reclamará logo a seguir do “imperialismo yankee”?
- Os diamantes de Angola são uma das poucas coisas cobiçadas pelos americanos? Ou pelos belgas, os maiores lapidadores mundiais e que, com este comércio dão sustento ao tráfico de armas continental? Este particular detalhe do continente africano seria “melhor visto” pelos europeus, mas aí o spam perderia sua eficácia antiamericanista.
Americanos, europeus e japoneses se deslumbram com as belíssimas paisagens naturais africanas que, não fosse o nível de violência e corrupção da maior parte de seus países conseguiriam aumentar seus proventos com o ecoturismo. E, de mais a mais, a África Subsaariana está tão “deslocada” do novo mapa-múndi das finanças e da produção que se, a partir de hoje, crescesse a taxas superotimistas durante quatro décadas, mal conseguiria atingir os níveis obtidos na década de 70.[9]
Retratar num mapa-múndi...
- A fronteira entre Paquistão e Índia, uma das regiões mais perigosas do mundo;
- Os áridos e montanhosos Afeganistão, Irã e Turcomenistão, onde pelo que sei se produz muito ópio;
- O leste da Polônia que fica coberto de neve por três meses durante o inverno ou o norte da Rússia européia que fica por seis e, cujas temperaturas podem chegar a incríveis -20oC (como média)
...Como, pasmem, “fazendeiros” é bastante “imaginativo”! Será que os professores uspianos ignoram que os EUA são responsáveis por:
- 11% da produção mundial de trigo;
- 36,4% de milho;
- 7,1% de batata;
- 47,1% de soja;
- 15,2% de leite;
- 8,9% de manteiga;
- 21,7% de carne bovina;
- 9,7% de carne suína;
- 9,6% de açúcar de beterraba;
- e, at last but not least, 5% do pescado mundial?
Patético, não? Como podem chamar a Ásia de “fazendeiros” se este continente detém 60,4% da população mundial e produz apenas 44,3% dos alimentos do globo? Ao passo que a América do Norte conta com apenas 8% dos seres humanos e 13,8% dos alimentos? (13% dos produtos agrícolas comercializados mundialmente são, no entanto, provenientes dos EUA.) Rússia, Irã e Turcomenistão, alguns dos “fazendeiros” citados, importam 50% mais alimentos do que exportam. Canadá e EUA, por sua vez, exportam 10% a mais do que importam.
E o mais significativo é que apesar de toda esta pujança agrícola, o peso do setor primário para os EUA é inferior a 10% do PIB. “Fazendeiro pobre” seria uma designação adequada para países como Afeganistão, cujo peso agrícola no PIB chega aos 70%, ou mesmo a Rússia que oscila entre 10 e 25%.[10]
Quem precisa, portanto, de produtos de regiões, agricolamente, pobres do mundo? Quem sofre seguidas e freqüentes retaliações por parte da UE, incentivadas especialmente pela França, para que seus produtos agrícolas não concorram no seu mercado interno? Patética a mentalidade de quem não se perguntou sobre fatos e dados, sobre a Verdade ao colocar este spam como motivo para uma questão de uma importantíssima prova de seleção pré-universitária.
Mais uma pergunta: que tipo de barbitúrico se ingere para elaborar uma questão assim?
Um ponto positivo é ter ressaltado o Reino Unido como “melhor amigo”, embora em diplomacia não se trate disso exatamente, mas de interesses. E vejo com bons olhos, é claro, que Tony Blair não tenha sucumbido ao canto da sereia europeu continental de se opor, intransigentemente, ao combate dos EUA ao terrorismo global. Isto já invalida a pecha de “amigos” a todos países europeus colocados indistintamente, já que a Itália tomou partido diferente dos opositores alemães e franceses. O mesmo vale para os países do Oriente Médio onde não se pode colocar todas suas nações como aliadas ou inimigas, haja vista o grande nível de dissenso interno.
Tampouco, isto se refere a seus governos oscilantes em termos de política externa. A própria Jordânia que se apresenta como “aliada” tem autoridades suspeitas de colaborar com a Al Qaeda.[11]
Estúpida é a colocação do Japão, Filipinas, Taiwan e Coréia do Sul como “eles dizem que são amigos”. Segundo a resolução dos professores do Anglo exposta abaixo da questão e que caracteriza o modo de pensar economia mundial por parte dos professores de geografia de ensino médio (e superior) na América Latina. Essas economias não são concorrentes, mas complementares. Empresas concorrem, países não, necessariamente. Se todo país agir como empresa querendo exportar e exportar mais, detendo superávits na balança comercial, quem vai importar mais? Quem mais importa, como bem sabemos, são os próprios EUA se tornando pela via econômica, ao contrário do que pensam nossos ilustres professores, os maiores aliados dessas economias asiáticas transformadas em plataformas de exportação no Pós-Guerra. Tudo isto, presente de desenvolvimento econômico-social patrocinado pelo Tio Sam...
A Austrália que formava uma aliança militar com Nova Zelândia e EUA durante a Guerra Fria – ANZUS -, apoiou a guerra ao Iraque e é uma das economias que mais crescem no mundo atual. 
Seu governo, do primeiro-ministro conservador, John Howard foi reeleito para um quarto mandato e o crescimento econômico da belíssima “Down Under” tem sido intenso e crescente desde o ano passado. Fruto de uma política de privatizações e, em geral, liberal em sua economia.[12]
Bem, depois disto, tenho que concordar num ponto - não contemplado pelo Q.I. de ungulado que elaborou esta questão -, em que a maioria dos americanos demonstra suma ignorância:
“Segundo pesquisa anual realizada pelo Instituto Gallup, o Brasil é o sétimo país mais bem visto pelos americanos. Vinte e dois países foram analisados. (...)A visão favorável do país é compartilhada por 66% dos americanos, contra 21% que disseram ter uma imagem desfavorável.”
[1] Cf. A prova de Geografia da FUVEST 2004

[2] “Desta maneira a América gozou cinco séculos do mais completo isolamento. Não se fez nada para se preparar contra um ataque iminente dos europeus, pois era insuspeita a existência da Europa e da Ásia. Não havia tribo nem nação indígena que sabia coisa alguma de seu próprio continente mais além de umas poucas centenas de milhas. Entre os naturais do país não havia nada que se assemelhasse a um sentimento de solidariedade nacional ou continental; não existia sequer um nome para a raça ou para o país, pois quase todas as tribos índias se chamavam a si mesmas algo assim como ‘Nós, o Povo’ e empregavam alguma denominação insultante para referir-se a seus vizinhos” In MORISON, Samuel Eliot, Henry Steele Commager y William E. Leuchtenburg. Breve História de los Estados Unidos – 4a ed. – México : FCE, 1999, p. 15. Itálicos e tradução meus.

[3] ANTOSSIAK, A. B., ARZUMANOV, G. A., VOLOVITCH, V. G., GOKHMAN, V. M., KIRIAN, M. M., KRUGLOV, L. L., KOROTKOV, G. I., MIGOLATEV, A. A., SAVIN A. S., SOLOVIOV, V. A., KHOZIN, G. S. Geografia do Militarismo. Moscou, Edições Progresso, 1987. Anexo, mapas. O fato de ser um livro da antiga URSS só mostra a preocupação e atenção concernente ao poderio americano, particularmente, no hemisfério ocidental. Se os próprios soviéticos o temiam e, portanto, reconheciam, como podem geógrafos da USP ignora-lo?

[4] 
Narcotráfico. Industria global.

[5] “A ajuda não seria nem financeira nem com envio de armamentos, mas com projetos, por exemplo, como os que já existemde cooperação na área agrícola” (“Brasil descarta risco na fronteira após vitória de Uribe na Colômbia.” Valor Econômico. Terça-feira, 28 de maio de 2002 - Ano 3 - Nº 517 - 1º Caderno. Itálicos meus).

[6] “O que muda para o Brasil” Exame, edição 829. Ano 38 – No 21 – 27 de outubro de 2004.

[7] 
Berço Explêndido [e] “Tem gringo no mato”. Veja, 11 de fevereiro de 2004.

[8] Apesar dos elogios de Bush e Blair a posição de Khadafi de condenar estrategicamente a posição e resistência de Saddam Hussein às investigações de armas de destruição maciça, 
os EUA continuam tratando a Líbia como “estado patrocinador do terrorismo” e lhe impondo sanções econômicas. O que, diga-se de passagem, é pouco para um assassino como ele.

[9] KAPLAN, Robert D. Os Confins da Terra: uma viagem na véspera do Século 21. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 29.

[10] PHILIP’S. Modern School Atlas. London: George Philip Limited, 1998, 92nd Edition.

[11] 
Plano terrorista com armas químicas na Jordânia [e] Jordan says major al Qaeda plot disrupted

[12] 
A Nova Austrália

O autor é professor de Geografia no Ensino Médio e Pré-Vestibular, formado pela UFRGS.

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