segunda-feira, outubro 28, 2019

Todas as minhas faltas não foram por crenças estúpidas


Trabalhei muitos anos em São Paulo, capital, como professor da rede pré-vestibular de vários cursos. Em dez anos eu tive uma única falta porque fui obrigado a ir a um hospital. Fiquei “travado” nas costas, na região lombar por falta de alongamento. Dirigia muito e passava muito tempo sentado em casa em frente ao computador e me descuidei completamente de exercícios que fazia com regularidade até meus 28 anos. Quando fiz 30 anos em diante, o ritmo de trabalho que me impus me afastou das atividades físicas, necessárias a uma boa saúde.
Com cerca de 28 anos também tive um tumor benigno que me levou a uma cirurgia e com cerca de 47 anos, no mesmo local surgiu um tumor maligno chamado Ex Adenoma Pleomórfico de Parótida Direita, caso raro no mundo, um entre apenas 200. Pelo que me disseram, mais difícil que ganhar na Mega-Sena. Minha cirurgia durou 12 horas e foram três cirurgiões específicos, um de cabeça-e-pescoço, outro de ouvido e mais um plástico. O lado direito de meu rosto ficou parcialmente paralisado, foi retirado o nervo sural da perna esquerda e colocado como conduíte para ligar a enervação recuperando parte dos movimentos, a retirada do tumor deixou um vazio sem carne e músculos preenchido depois por um retalho da minha coxa esquerda. Depois, mais um mês com sessões de radioterapia e mais quatro de quimioterapia. Além disso medicamentos para dor, para recuperação e tratamento contra efeitos colaterais na face, inclusive dentário devido à radiação.
Tudo isso, toda essa história para depois um babaca vir me receitar um “bom chá para evitar o câncer”. Claro que uma boa alimentação, exercícios e, muito provavelmente, saúde mental em dia devem evitar certas patologias, mas o câncer não é bem assim. Exceto por aqueles casos em que há forçantes que levam ao câncer, há casos em que simplesmente se está programado para tê-lo desde o nascimento. Isto não quer dizer que tu não tenha que lutar contra a doença e fazer todo o possível para evitá-lo, ou melhor, atrasá-lo. Quando vejo, p.ex., pessoas que deixam de vir ao trabalho ou aplicam uma desculpa por estarem gripadas, mas quando tu as questiona severamente te confessam que “não tomam remédio” e têm claro preconceito contra esses é um nojo só. Coisa de imbecil por mérito próprio e é a esses que dirijo esta mensagem: envergonhem-se de usar desculpas para não se medicarem. Se um médico não lhe agrada, procure outro, mas não abandone a Ciência. Eu me consultei com três médicos até ter confiança naquele que tinha o discurso mais conservador, ou seja, o mais pessimista. Pois se eu não entendo do assunto, eu sempre vou apostar naquele que me passa as informações mais difíceis de digerir como quando eu era acompanhado pelo oncologista que, de tão perdido que ficava com meu caso, se punha a filosofar porque simplesmente não tinha quase nada a me dizer.
Se um desses otários anti-medicamentos visse, durante um mês, crianças com aventais e sapatilhas escorregando pelos corredores encerados do hospital que estive em São Paulo, crianças de 10 anos ou menos com olhar assustado frente aquele maquinário todo, daí eu não teria paciência se viesse me encher o saco com esse papo de chá. Agora mesmo enquanto escrevo isto tomo meu chimarrão e a noite, mais chá ainda, mas não porque eu ache que isto vai me evitar um câncer. Tomo, simplesmente, porque gosto do sabor amargo (boldo é meu chá preferido) e o hábito me ajuda a refletir, inclusive, contra as imbecilidades do mundo contemporâneo com estas novas crenças que fazem pouco caso de séculos de desenvolvimento científico e tecnológico. É um movimento global anti-iluminista que pode nos causar prejuízos similares aos cataclismas climáticos. Estes imbecis ainda vão alardear mais suas ideias e formar exércitos de naturebas anti-vax, que demonizam antibióticos e não tomam sequer um anti-inflamatório, mas acham que ficar deitado em casa assistindo a Netflix vai livrai-vos do mal, amém! Cambada de néscios!
Algumas semanas depois acuei o médico-chefe da minha cirurgia que me acompanhava e o questionei, olhando nos olhos, de modo que ele não pudesse se ocultar por trás de nenhum médico-residente:
— Doutor, quais as chances de sobrevida?
— 60% após 5 anos.
— Isto quer dizer que no meu caso, 6 sobrevivem entre 10 em menos de uma década?
— Sim.
— Obrigado então.
Passados sete anos só tenho a agradecer a toda equipe do hospital, os médicos, enfermeiros, psicólogos, odontologistas, fisioterapeutas, administradores, encarregados de limpeza e seguranças. Todos que sabiam que muitos dos rostos que cumprimentavam, não veriam mais depois de algum tempo, muitos dos quais sairiam deste solo para baixo dele ou no ar, após serem queimados. De qualquer forma, aqui estamos, sem fazer corpo mole e pode passar mais uma década que não faltarei mais que um dia ou menos.
Anselmo Heidrich
28 out. 19

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