Pessoal, e o cotidiano chinês contemporâneo?
[Trechos sublinhados por mim e em vermelho. Meus comentários aparecem entre colchetes e em vermelho.]
A nova classe média
A súbita prosperidade da China traz liberdades jamais sonhadas - e uma série de ansiedades.
Aos 4 anos, a menina Zhou Jiaying estava inscrita em dois cursos: inglês americano falado e conversação em inglês. Ela também ganhou um nome em inglês: Bella. Seus pais empenhavam-se em que ela fosse fazer faculdade no exterior.
No ano seguinte, puseram-na em um curso de teatro. Quando Bella completou 8 anos, começaram as aulas de piano, em que ensinavam disciplina e desenvolviam o cérebro. Nos verões, ela aprendia a nadar na piscina. Com a natação, diziam os pais, ela ficaria mais alta. Bella queria ser advogada, e, para isso, a pessoa tinha de ser alta.
Por volta dos 10 anos, a menina levava uma vida rica em possibilidades, e tão regrada quanto a de um recruta no quartel. Depois da escola, ela fazia seu dever de casa sem supervisão de ninguém até seus pais chegarem em casa. Depois, era o jantar, o banho e os exercícios no piano. Às vezes, ela podia ver televisão, mas apenas os noticiários. Aos sábados, tinha aula particular de dissertação, seguida de outra de olimpíada de matemática, um sistema popular de aprendizado que usa o apelo dos esportes para estimular as crianças. Domingo era dia de lição de piano e uma aula preparatória para o exame de admissão a uma escola ginasial (da 6a à 8a séries) de Xangai. O melhor momento da semana era a tarde de sexta-feira, quando a escola acabava mais cedo. Bella podia tomar fôlego e dar um tempo, como um presidiário que, de um canto do pátio da cadeia, entrevê uma nesga de céu azul.
Para a classe média emergente da China, essa é uma era de aspirações – mas também um tempo de ansiedades. As oportunidades multiplicaram-se, mas aproveitá-las sem fracassar envolve muitas pressões, e cada nova aquisição parece vir embrulhada em desapontamento por não ser a mais nova e melhor. Um apartamento renovado poucos anos atrás parece antigo. Ter um telefone celular sem tela colorida ou câmera de vídeo é um vexame. A liberdade nem sempre é libertadora para as pessoas que cresceram em uma sociedade socialista estável. Por vezes tem-se a impressão de ser uma luta sem fim para não ficar para trás. Um estudo demonstrou que 45% dos chineses residentes em cidades estão com a saúde em risco devido ao estresse. As taxas mais altas estão entre os alunos do colegial.
A 5a série, para Bella, foi a mais dura de todas. No fim, ela iria se submeter aos exames de admissão ao ginásio. Cada estudante conhecia o desempenho dos demais, pois os professores, ao devolver as provas corrigidas, reuniam os alunos em grupos, de acordo com seus resultados. Bella tinha um desempenho considerado médio – 12o ou 13o, em uma classe de 25.
A menina odiava o Japão, como lhe ensinavam os livros didáticos: os japoneses tinham matado 300 mil chineses no massacre de Nanjing, em 1937. Também odiava os Estados Unidos, porque estavam sempre se metendo nos negócios dos outros países. Bella falava um bom inglês: "Men like to smoke and drink beer, wine and whiskey". ("Os homens gostam de fumar e beber cerveja, vinho e uísque.") Seu restaurante favorito era o Pizza Hut, e ela gostava das asas de frango apimentadas do Kentucky Fried Chicken. Seu recorde no bambolê era de 2 mil giros.
[Odeie ou não odeie os EUA e o Japão, o fato é que o capitalismo está vencendo.]
O melhor lugar do mundo era a loja infantil de departamentos Baodaxiang, na via Nanjing. Na vasta papelaria da loja, Bella escolhia novidades para a sua coleção de borrachas de apagar. Ela possuía 30 borrachas, armazenadas numa lata de biscoitos em casa. De diversos formatos, como sandálias Havaianas, hambúrguer ou personagens de desenho animado, nenhuma muito maior que a unha do dedão, todas permaneciam nas embalagens plásticas originais.
Se Bella ia bem numa prova, seus pais lhe compravam presentes. Por outro lado, uma nota baixa lhe valia um corte nos privilégios em casa. A matéria em que se saía melhor era o chinês, na qual dominava a arte da composição. Ela era capaz de descrever um objeto doméstico de uma forma moralmente edificante:
No inverno passado a vovó pôs seu vaso de clorófito para fora de casa e se esqueceu dele... Nesta primavera a planta voltou a viver. Algumas pessoas dizem que ela é uma planta humilde, mas o clorófito não dá ouvidos a ordens arbitrárias nem tem medo da miséria. Em face da adversidade não desiste de lutar. Esse espírito merece aplausos.
Bella ia mal em matemática. Aulas particulares dessa matéria eram uma constante, e isso durou até os exames de admissão à faculdade, sete anos mais tarde.Um aluno era considerado tão bom quanto o seu pior desempenho em uma matéria. Se o jovem não conseguisse entrar em algum dos melhores ginásios de Xangai, seu destino seria encarar colegas medíocres e professores que ensinavam apenas o que constava nos livros didáticos. Em conseqüência, diminuiriam suas chances de ingressar em um bom colegial, sem falar em uma boa faculdade. O negócio era avançar o tempo todo, pois permanecer parado significava ficar para trás. Era assim que o mundo funcionava, mesmo que você tivesse apenas 10 anos.
A década passada assistiu à ascensão de algo que Mao Tsé-tung, o histórico líder comunista chinês, lutou para erradicar de uma vez por todas: uma classe média chinesa, hoje estimada entre 100 milhões e 150 milhões de pessoas. Embora variem as definições – uma renda familiar de pelo menos 10 000 dólares ao ano é um dos critérios –, as famílias de classe média tendem a possuir um apartamento e um carro, saem para comer fora e tiram férias, além de terem familiaridade com marcas e idéias estrangeiras. Essas pessoas devem seu bem-estar às políticas públicas na economia liberal da China moderna, mas, à boca pequena, podem ser bastante críticas com a sociedade em que vivem.
O afastamento do Estado da esfera privada permitiu às pessoas decidir onde morar, trabalhar e viajar. As oportunidades materiais, por sua vez, se expandem ano a ano. Uma década atrás os automóveis pertenciam às empresas estatais. Agora, muitas famílias possuem carro próprio. Apenas dez anos atrás, em 1998, quando o governo lançou reformas para ativar o mercado imobiliário, era raro alguém ter um apartamento.
Todavia, basta ler um jornal chinês para sentir inquietude quanto à velocidade das mudanças sociais. Durante vários meses, em 2006, o Xinmin Evening News, um diário popular de Xangai, abordou as seguintes tendências: garotas do colegial estavam sofrendo de transtornos alimentares. [Bem... Isto é um "pouco" melhor do que o ressurgimento do canibalismo em áreas rurais durante o maoísmo...] Os pais esfalfavam-se para escolher um nome inglês adequado a seu filho. Garotos adolescentes andavam lendo romances com temática homossexual. Desempregados em busca de um emprego assediavam templos budistas porque a palavra que designa o "Buda reclinado" – wofo – soa como a palavra inglesa offer, "oferta" – de trabalho, no caso. Casais de estudantes estavam se juntando fora do matrimônio.
Os pais esforçam-se em ensinar coisas aos filhos, mas sentem que o próprio conhecimento está obsoleto. As crianças mais afinadas com as novas tendências sociais guiam os pais pelo labirinto da vida moderna. "A sociedade ficou invertida", diz Zhou Xiaohong, sociólogo da Universidade de Nanjing. Ele percebeu o fenômeno pela primeira vez quando o próprio pai, um militar aposentado, perguntou-lhe como dar o nó em uma gravata ocidental. "Os pais davam as ordens, mas agora eles escutam os filhos", completa.
Diante das altas expectativas dos pais, as crianças figuram entre os seres mais pressionados, vivendo em um mundo que combina o novo com o arcaico – e que apresenta os elementos mais punitivos de ambos. O anseio de gerar estudantes bem preparados causou uma explosão de atividades – aulas de música, inglês, desenho e artes marciais –, fazendo de cada uma delas uma arena de competições. Tais esforços envolvem pouco prazer. O domínio do inglês é escalonado em cinco níveis que avançam faculdade adentro; um estudante de piano tem de atravessar dez níveis de proficiência; mais de metade dos pré-adolescentes têm aulas particulares.
Os pais procuram seguir a moda às cegas, acreditando na maior parte daquilo que ouvem. O passado é como um país estrangeiro, assim como o presente. "Nós somos uma família tradicional", apresentou-se a mãe de Bella, Qi Xiayun, quando a conheci, em 2003. Ela tinha 33 anos, com o rostinho pálido de menina, e falava sobre a dificuldade de se criar um filho. Qi dá aulas de computação. Seu marido trabalha com controle de qualidade na Baosteel, uma empresa estatal. Eles foram indicados a seus empregos ao sair da faculdade, e pertencem à última geração a incorporar-se à força de trabalho socialista, antes que ela começasse a se desmantelar.
Os pais de bella conheceram-se à moda antiga, apresentados por seus respectivos pais. Mas, depois que Bella nasceu, em 1993, deram as costas à tradição. Decidiram não mais jantar todas as noites com os sogros e rejeitaram os métodos antigos de criação infantil que tendem a mimar as crianças. Quando Bella ainda não tinha 2 anos, sua avó ofereceu-se para cuidar da netinha, mas sua mãe teve medo de que os avós enfraquecessem o caráter da menina com seus mimos.
Ao passar para a 3a série, sua mãe deixou de apanhá-la na escola, obrigando-a a fazer baldeação de ônibus e atravessar ruas sozinha. "Mais cedo ou mais tarde ela precisará aprender a ser independente", dizia Qi. E assim Bella foi crescendo, tagarela, com suas trancinhas de Emília do Sítio do Pica-Pau Amarelo, cheia de opiniões – até demais para uma sala de aula chinesa. Ainda no 2o grau, ela e várias coleguinhas marcharam até a sala da diretora para reivindicar mais tempo para brincar. O protesto falhou. Os professores criticaram seu temperamento e sua tendência a intimidar outras crianças. "Sua habilidade é forte", dizia a ficha de um relatório da 1a série, "mas uma pessoa deve aprender com a força dos outros para poder se desenvolver."
O esforço para enquadrar Bella está cheio de contradições. Seus pais encorajam sua independência, mas têm receio de que a escola e o ambiente de trabalho a punam por isso. Eles reclamam de sua exagerada carga de lições de casa, mas multiplicam suas atividades extra-escolares. "Não queremos ser duros com ela", diz o pai de Bella, Zhou Jiliang. "Mas, na China, o ambiente não permite fazer outra coisa."
Bella ensina aos pais as gírias mais recentes e os apresenta a sites bacanas na internet. Quando eles compraram um novo televisor, a filha escolheu a marca. Quando eles saem para comer fora, Bella sempre escolhe a Pizza Hut. Seus pais temem que esteja próximo o dia em que não mais terão capacidade de ajudá-la nos trabalhos escolares. Quando a garota era menor, eles passaram a desconectar o teclado e o mouse do computador para que ela não ficasse online sozinha em casa. Sabiam, porém, que isso não ia durar.
Recentemente, o pai de Bella e a irmã dele, junto com uns primos, puseram o avô comum em uma casa para idosos. Foi uma decisão difícil. Na China tradicional, cuidar dos pais velhinhos era uma responsabilidade inescapável. Além disso, seu pai e sua mãe dispõem de um quarto extra no apartamento para quando os próprios pais precisarem se mudar para lá algum dia. Bella, no entanto, já anunciou que irá pôr seus pais na melhor casa para idosos que houver. "No instante em que ela disse isso, eu pensei: está certo, não queremos ser uma carga para ela", diz o pai de Bella. "Quando estivermos velhos, venderemos a casa, faremos uma viagem para ver o mundo e nos mudaremos para o lar dos idosos. E lá viveremos uma vida tranqüila. Essa é a educação que a minha filha está me dando."
Eu fui para a escola com bella numa sexta-feira, no ano em que ela fazia a 5a série. Às 6h25 da manhã, a guria já estava sentada na cama. Depois, vestiu a calça e um abrigo esportivo laranja, amarrando no pescoço um lenço dos Jovens Pioneiros, espécie de associação de escoteiros ligada ao Partido Comunista. Seus pais corriam de lá para cá no exíguo e atulhado apartamento, aprontando-se para o trabalho, o que não deixou tempo para o café-da-manhã. A mãe de Bella levou-a só até a esquina. A menina suspirou e tomou sozinha o rumo do ponto de ônibus. "Esse é o máximo de liberdade que eu tenho durante o dia todo."
Nesse dia haveria eleições para representantes de classe, postos que espelham os do Partido Comunista. "Minha mãe diz que é muito importante ser representante na 5a série", conta Bella. O ônibus nos deixou em frente à Escola Primária Yangpu, instituição de elite que custa cerca de 1 200 dólares ao ano entre taxa escolar e outras despesas e rejeita 80% dos candidatos a vagas. A sala de aula dela era ensolarada e barulhenta.
Por volta das 8h30, a garotada aguardava as eleições em suas carteiras. A jovem e bonita professora perguntou pelos candidatos. Todo mundo queria participar da eleição. "Neste semestre quero parar de roer as unhas para que as pessoas não me chamem de Rei da Unha Roída", diz um garoto que concorria ao posto de representante de propaganda. As falas seguiam um determinado padrão: cite uma falha pessoal, comprometa-se a saná-la e peça votos. Era a autocrítica como estratégia de campanha. Aqueles que fugiam do script eram corrigidos. "Minhas notas não são muito boas porque eu escrevo errado um monte de palavras", diz uma garota que pleiteava o cargo de representante acadêmica. "Por favor, votem em mim, todo mundo."
"Você escreve errado as palavras e pede votos?", arremeda a professora. "Você não está esquecendo nada?" A garota tentou de novo: "Eu quero trabalhar para consertar esse mau hábito. Por favor, votem em mim, todo mundo".
Bella deu sua tacada visando o posto de representante esportiva. "Eu sou muito responsável e as minhas habilidades administrativas são boas", apresenta-se ela num só fôlego. "Às vezes tenho uns conflitos com outros alunos. Se vocês votarem em mim, isso vai me ajudar a corrigir meus hábitos. Por favor, pessoal, me dêem seu voto."
Competindo com mais duas concorrentes, Bella ganhou raspando por um voto. O dia da eleição, como tudo mais na escola, terminou com uma lição de moral: "Não fique mal se você perdeu desta vez", resume a professora. "Isso significa que você precisa trabalhar com mais afinco. Você não deve afrouxar só porque perdeu."
A linguagem da educação infantil é de uma severidade darwiniana. "As eleições ensinam os alunos a serem mais rigorosos consigo mesmos", explica Lu Yan, a mestra de Bella, durante o almoço na cafeteria dos professores. "No futuro, vão enfrentar pressões e competição. Eles precisam saber como encarar a derrota."
Algumas escolas atrelam a remuneração do professor à performance dos alunos nas provas. Assim, a pressão sobre os professores é intensa. As notas da classe de Bella decaíram recentemente, e a professora implorou aos pais que ajudassem a identificar as causas. Lu Yan tinha acabado de terminar seu quarto ano do colegial na escola noturna e planejava estudar inglês a seguir. Todas as suas colegas estavam tendo aulas particulares. Até a vice-diretora tinha aulas de fim de semana em tecnologia educacional. Uma professora de matemática fora despedida depois das primeiras três semanas do ano letivo porque os pais reclamaram que ela cobria muito pouca matéria nas aulas.
A vida, porém, não será sempre assim. A próxima geração de pais, formada num ambiente de escolha e competição, poderá se sentir menos inclinada a depositar todas as esperanças nos filhos. "Os tempos atuais são os mais duros", resume Wang Jie, uma socióloga que é também mãe de uma única criança."Minha geração lida ao mesmo tempo com a tradição e as novas idéias. Dentro da gente esses dois mundos estão em pé de guerra."
A escola terminava à 1 e meia da tarde às sextas. O ônibus deixou Bella diante de seu prédio, onde ela comprou um refrigerante e rumou para casa. Como seu fim de semana estava tomado por aulas particulares, a sexta-feira era a melhor oportunidade de dar conta de seus deveres de casa. Eu contei a ela que, nos Estados Unidos, nenhuma criança de 10 anos fazia lição de casa numa sexta à tarde. "Ela devem ser muito felizes", comentou Bella.
NESSES cinco anos em que eu conheço Bella e a família, suas vidas se transfomaram. Eles se mudaram para um novo apartamento de três quartos quase duas vezes maior que o antigo (que eles alugam agora), todo equipado com móveis e eletrodomésticos de marcas estrangeiras. Compraram também seu primeiro automóvel, um Volkswagen Bora. Em lugar de pegar ônibus, eles vão de carro a toda parte. Saem para comer fora um par de vezes por semana e o ar-condicionado fica ligado o verão todo. Aos 12 anos, Bella ganhou seu primeiro celular, um Panasonic estiloso de 250 dólares, num tom de cor-de-rosa da Barbie. A renda anual de seus pais atingiu 18 000 dólares, um aumento de 40% em relação a quando nos conhecemos.
À medida que a situação material da família foi melhorando, o mundo tornou-se um lugar mais perigoso. A faxineira roubou deles e desapareceu. Vários amigos envolveram-se em acidentes de carro quase fatais. Um dia o pai da garota viu-a com uma carta enviada por um homem que ela conhecera na internet. Os pais de Bella trocaram as fechaduras e o número de telefone do apartamento. E o pai agora decidiu levar e pegar a filha na escola, todos os dias, por achar que a vizinhança ali é insegura.
A mãe de Bella assumiu mais responsabilidades administrativas no trabalho e passou a ter aulas nos fins de semana visando uma pós-graduação. O pai falava em trocar o carro por um modelo mais novo, com maior aceleração e mais espaço para as pernas. Eles freqüentemente se referiam a si mesmos como se fossem celulares em vias de obsolescência. "Se você não se mantém atualizado e com as baterias recarregadas", diz o pai, "acaba sendo eliminado."
A mobilidade social ocorria nos dois sentidos. Uma amiga da mãe de Bella parou de ir às reuniões de classe por se sentir envergonhada com o fato de trabalhar como segurança. Uma firma tocada por um amigo da família foi à falência, e sua filha, da idade de Bella, passou a comprar roupas baratas em bancas.Mas amigos que haviam se tornado empresários privados estavam tendo um segundo filho – e pagando multa por isso, devido às regras do governo que visam coibir famílias com mais de um filho. A sociedade atomizava-se com base em pequenas diferenças.
Bella prestou exame em um dos melhores ginásios de Xangai, onde os professores costumam segurar os alunos até depois das 5 da tarde enquanto os pais esperam impacientes nos carros lá fora. Ela está no nível 3, em inglês, e no 8, no piano. Ela ainda tira notas medianas em relação a sua classe, mas já não tem mais fé no mundo dos adultos. A garota agora desdenha das eleições para representante de classe."Dá muito trabalho", explica ela, "e a professora fica apontando para você como modelo de comportamento. Se você se mete em alguma encrenca e é rebaixada, isso vira uma grande vergonha."
Ela adora os filmes de Hollywood – especialmente Guerra nas Estrelas – e passa horas na internet com os amigos comentando o Detetive Conan, um personagem japonês de história em quadrinhos. Bella pretende casar-se com um estrangeiro porque eles são mais ricos e mais confiáveis. Seus pais deixaram de ajudá-la com os deveres de casa – em matéria de inglês, ela já os ultrapassou faz tempo. Eles vivem insistindo para a filha ser menos esbanjadora. "Quando ela era pequena, concordava com todas as minhas opiniões. Agora Bella fica ali sentada sem dizer nada. Mas eu sei que ela não concorda comigo", diz a mãe, certa tarde, na sala de estar do novo apartamento, sob o olhar mudo da garota."A educação que demos a ela fracassou."
Na China, o conceito do adolescente rebelde simplesmente inexiste. Por toda a sociedade chinesa os pais parecem perdidos quando se trata da educação dos filhos. Os jornais têm colunas de aconselhamento, nas quais a dica mais rudimentar – "Não planeje à força a vida da criança" – sugere o tipo de problema que eles enfrentam. Algumas escolas instalaram escolinhas para pais, em que eles podem partilhar suas frustrações e dicas educacionais. Mas às vezes os educadores chegam a extremos: na Escola Primária Zhongguancun No 2, em Pequim, a vice-diretora, Lu Suqin, levou dois garotos da 5a série para casa. "Como seus pais não conseguiam fazê-los se comportar, pediram-me que os levasse", explica ela. "Depois que tiverem aprendido a viver com disciplina, vou mandá-los de volta."
Bella teve um dia livre durante o feriado do Dia Nacional, que durou uma semana. Uma parte de sua família extensiva – sete adultos e duas crianças – fez uma viagem a Tongli, cidade com mansões imperiais, a uma hora de carro de Xangai. O pai de Bella alugou um microônibus e um motorista para o passeio, pois um amigo dele tinha acabado de sofrer um acidente automobilístico, no qual quebrou todos os ossos de um lado do corpo. Bella ficou sentada sozinha lendo um livro. A China em desenvolvimento zunia pela janela, com a mancha urbana cedendo lugar a um campo florescente, com fábricas e casas de três andares de fazendeiros prósperos. A mãe de Bella deixou-se levar pelo sonho de ter uma casa no campo. "Poder ter o próprio gramado na frente de casa", sonha ela. "Adoraria ter um lugar assim para quando a gente se aposentar."
Ela estava pensando no futuro de Bella. Se a filha passasse no vestibular para uma boa faculdade, ela ficaria na China. Do contrário, partiria para o exterior e, para tanto, eles venderiam o apartamento antigo. A mãe também decidira que a garota poderia namorar na faculdade. "Se ela achar alguém que sirva no terceiro ou quarto ano, tudo bem. Mas não no primeiro ou no segundo." "E no colegial?", pergunto. "No colegial não. Os estudos devem ser mais importantes."
Tongli estava apinhado de visitantes naquele feriadão. A família de Bella caminhava pelos átrios e jardins feito um bando de sonâmbulos, admirando tudo que os guias turísticos indicavam. Eles tocaram o tronco da Árvore da Saúde e da Longa Vida. Circularam em torno de um mosaico de pedras que, supostamente, trazia sucesso profissional. Não conseguiam parar de andar nem por um instante por causa da multidão a pressioná-los por trás. Afinal, era o dia turístico máximo do ano. Bella, educadamente, traduzia tudo para uma tia-avó vinda da Austrália que não falava chinês, mas aquilo era só um número. "Isso é muito chato", me diz a garota. "Quem vê uma mansão já viu todas."
Sento-me a seu lado na viagem de volta. Bella está mergulhada numa novela romântica coreana. "É sobre estudantes do colegial", diz ela. "As pessoas namoram no colegial?", pergunto.
"Sim."
"E no ginásio?"
"Sim. Algumas."
"Você tem namorado?"
Ela franze o nariz. "Tem um garoto que gosta de mim. Mas todos os meninos da minha série são de classe muito baixa."
Sua vontade era ir para a Austrália fazer pós-graduação e ficar por lá trabalhando. Ela podia fazer mais dinheiro dessa maneira e levar seus pais para morar com ela. "Na superfície a China parece luxuriosa, mas no fundo é um caos", diz Bella. "Tudo é tão corrompido."
Alguns observadores da sociedade chinesa olham para crianças como Bella e enxergam mudança política. Eles prevêem que a geração dela, de individualistas, vai querer, um dia, dar sua opinião sobre a forma de governo. Mas a realidade é complicada. Criados e educados dentro do sistema, é possível que eles encontrem meios de se acomodar à situação, como sempre fizeram.
"Só pelo fato de terem curiosidade por ver algo, não quer dizer que queiram isso para si", diz Zhang Kai, professor de Bella no ginásio. "Talvez eles tentem fazer alguma coisa, pintar o cabelo ou colocar piercing na orelha. Mas, no fundo do coração, Zhou Jiaying é muito tradicionalista", diz ele, usando o nome chinês de Bella.
A menina está com 15 anos e hoje cursa a 9a série. Tem bons amigos entre seus colegas, e aprendeu a lidar com os demais. A escola é um lugar complicado. Um colega dela maltratou outro garoto. Os pais da vítima foram à escola reclamar. Por serem politicamente influentes, forçaram o professor a transferir o valentão da classe. O incidente dividiu a turma de Bella, e agora seus amigos da Panelinha dos Chatos não falam com seus outros amigos da Panelinha Pirata. Uma amiga entrou na escola sem fazer os exames de admissão porque a mãe tinha um primo num órgão superior de educação.
O professor de Bellla indicou alguns alunos para se filiarem à Liga da Juventude Comunista. Bella achou isso sem importância, mas entrou na fila e puxou da internet um formulário de admissão. Ela não pode se dar ao luxo de cair em desgraça com o professor, conforme me confessa, citando um provérbio: "Uma pessoa que se acha sob o teto da outra deve abaixar a cabeça".
O exame de admissão ao colegial será dali a uma semana. À noite seu pai vê televisão sem som para não atrapalhar seus estudos. Um bom amigo é também um inimigo a competir pelo mesmo nível dentro da classe. Suas redações descrevem o quanto ela se sente pressionada:
Cá estou sentada na minha classe de ginásio. O professor quer que a gente diga adeus à infância. Sinto-me perdida. A felicidade é como as estrelas cintilantes inundando o céu noturno da infância. Eu só quero mais e mais estrelas. Eu não quero ver o amanhecer.
NatGeo Brasil
Por: Leslie T. Chang | Foto: Randy Olson
Publicado em 05/2008
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Impressionante como dão peso ao sistema de ensino quando falam de ascensão social...
a.h
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